Um artista intuitivo que, logo cedo, teve a sorte de descobrir Cézanne, aprendeu noções de espaço na pintura e percebeu ainda que pintar era um trabalho minucioso e rigoroso. Aliás, “o verdadeiro destino de um grande artista é um destino de trabalho” (Bachelard). E foi justamente esta dedicação a uma vida de trabalho que fez de Rubem Valentim um mestre virtuoso; talvez o primeiro pintor baiano a enfrentar de frente a modernidade. A cultura popular, as imagens afro-brasileiras eram materiais de pesquisa plástica, matéria-prima para sua arte, submetida a uma disciplina e organização rigorosa, constituíam-se em imagens pictóricas no espaço da tela aspirando uma universalidade. Sua arte acabou se aproximando da tendência construtiva emergente na arte brasileira na época. Não era, com certeza, um artista concreto, mas chegou a representar o Brasil, na I Bienal de Arte Construtiva, em Nuremberg, juntamente com o ortodoxo concretista paulista Waldemar Cordeiro.
Valentim desenvolveu sua arte a partir de signos da cultura afro ao som de atabaques que reclamavam uma erudição. O artista, ao reduzir o símbolo à sua essencialidade primária, submetia-o à lei da pintura: proporção, simetria, cor, etc. Portanto, a importância do seu trabalho não se resume à origem de sua sintaxe, ou ao que ela pode representar. O trabalho tem a autonomia de sua fantasia e assim será lido em tempos futuros. Conhecido principalmente como o geômetra da cultura afro-brasileira, sua pintura ultrapassa essa objetividade mais visível. Na definição do próprio artista: “A arte é um produto poético, cuja existência desafia o tempo e por isto liberta o homem. Isto me afeta porque sou o indivíduo tremendamente inquieto e substancialmente emotivo”.
O artista é sempre um personagem do romance real que passa a vida querendo ver, trabalha os signos até transpor sua realidade social e histórica, como se fossem imagens de sonho. Por trás dessas figuras emblemáticas da pintura deste “monge do candomblé”, há um mundo de inquietações, revoltas e angústias, que faz parte da intimidade e da cidadania do artista. Um imaginário.
A arte, para Valentim, era mais que um trabalho, era um vício; era mais que um rito, era um raciocínio delirante. Era um artista capaz de passar 24 horas, sem parar, falando de arte, sem perder o entusiasmo e sem esgotar tudo o que deseja falar. “O tempo é minha grande preocupação – uma das minhas angústias é ver chegar o tempo final sem poder realizar tudo que imaginei” (Depoimento do artista, 1976). A arte, para Valentim, era um sonho imprescindível à vida, e interminável porque a imaginação estava sempre em atividade.
Através do olhar do artista, signos secretos provenientes da cultura popular passaram para o mundo complexo da arte onde são contemplados como sintaxe do belo, assim como Claude Monet contemplou as ninféias. Somos então convidados a participar de um ritual, olhar estes símbolos de contornos rigorosos, com profundidade, distância e tranqüilidade. Não estamos diante de coisas, mas elementos simbólicos de uma outra religião secreta, inventada pelo artista. Fantasia? A obra não responde, nos devolve as indagações. Era um artista que acreditava na arte como motivo essencial da vida, ou quem sabe, que a arte pudesse substituir a religião e até estruturar o cotidiano.
Mas o que mais marca o trabalho de Rubem Valentim é sua proposta de coerência como método de construção da obra. Pintor de vocação construtiva, seu trabalho passou por diversos momentos, sempre marcado por uma paixão: a vontade de refletir e pintar com austeridade. Dentro de uma atmosfera mítica, como se pintar fosse dialogar com alguma divindade. Nos momentos de plenitude ou vazio, de excesso ou contenção pictórica, da cor ao mergulho no silêncio do branco; quer sejam: pinturas, relevos, objetos, esculturas; o desejo de uma ordem construtiva estava presente sinalizando a coerência de um artista. Avesso às modas e sem fazer concessões: uma lição de mestre.