Almandrade

A história da arte conta apenas do que acontece nos centros, aliás a arte sempre dependeu dos centros culturais de informação e divulgação, com algumas raras exceções. No Brasil, não se tem uma informação menos apressada do que acontece nas outras regiões, é sempre um olhar à distancia que apenas o regional e o exótico, principalmente em se falando de arte contemporânea. De um lado defrontamos com o descrédito dos grandes centros e suas instituições, críticos, curadores, marchands, etc. com relação ao que se produz na periferia. De outro lado, convivemos ainda com comportamentos no meio de arte e uma produção dominante defasadas diante das questões atuais que preocupam o fazer artístico. Como diz o manifesto “arte / Bahia / estagnação” de 1976, assinado por mim e pelo critico Haroldo Cajazeira: “...A situação da arte na Bahia estagnou-se nas propostas da década de 60..., Não havendo nenhum vínculo com a produção e as discussões dos anos 70...”

Praticamente trinta anos depois do aparecimento da chamada arte contemporânea no Brasil, recalcada nos anos 70 pelas próprias instituições culturais, um outro contemporâneo surgido nos anos 90 passou a fazer parte cotidiano dos salões, bienais, do mercado de arte, das grandes mostras oficiais e de iniciativa privada. Estamos vivendo um momento em que qualquer experiência cultural: religiosa, sociológica, psicológica, etc. é incorporada ao campo da arte pelo reconhecimento de um curador ou de um outro profissional que detém algum poder sobre a cultura, (tudo que não se sabe direito o que é, é arte contemporânea). Como tudo de “novo” na arte já foi feito, o inconsciente moderno presente na arte contemporânea implora um “novo” e nesta busca insaciável do “novo” outras experiências de outros campos culturais são inseridos no meio de arte como uma novidade. Deixando a arte de ser um saber específico para ser um divertimento ou um acessório cultural. Neste contexto, o regional, o exótico produzido fora dos grandes centros entra na história da arte contemporânea.

No território das artes plásticas brasileiras, a Bahia passou por um processo de amadurecimento meio lento para absorver as linguagens modernas e promover uma renovação capaz de competir com a arte produzida nos grandes centros, o que marcava a produção baiana era uma tendência à regionalização e uma recusa à universalidade, a busca de um “moderno regional”. A adaptação às novidades modernas se deu de forma aleatória, dentro de um pacto com a temática local, nordestina. A contemporaneidade custou a chegar, e acabou sendo diluída sem se assimilar direito suas questões, como uma moda fácil que vem dominando a arte brasileira. Uma arte contemporânea sem história, instantânea e descartável.

A VONTADE DE UMA VANGUARDA

Na segunda metade da década de 60, houve na Bahia uma força de vontade de acompanhar as diversidades da vanguarda brasileira, não havia um procedimento de vanguarda, nem um pensamento, era mais um inconformismo com a situação em que se encontrava a Bahia diante das inquietações dos anos 60: contra-cultura , tropicália, experimentalismo e as rupturas dos suportes tradicionais. A vontade de intercâmbio com a vanguarda resultou nas Bienais da Bahia que contou com a participação das manifestações mais importantes da época: concretismo, neoconcretismo, tropicália, etc. fazendo de Salvador o centro das artes plásticas brasileiras. A repercussão nacional despertou interesse da Fundação Bienal de são Paulo em transferir a Bienal Nacional de Salvador para São Paulo. Chegou a provocar o cenário cultural local, contrário a uma atualização do meio de arte baiano. Como o regime político do final dos anos 60 era pouco favorável a liberdade cultural, surgiu o AI5 e a 2ª Bienal foi fechada. Foi o fim de uma iniciativa que deixou a arte brasileira de luto.

Depois da 2ª Bienal Nacional em 68, encerrada com o AI5, uma iniciativa não só para integrar a Bahia no cenário nacional, como também para criar um outro centro de referência para a arte no Brasil, o circuito de arte na cidade do Salvador se restringiu a eventos locais de pequeno porte, quase sem importância para arte brasileira. O Museu de Arte Moderna, criado em 1959, tendo como sua primeira diretora a arquiteta Lina Bardi, funcionando no foyer do Teatro Castro Alves, portanto situado num local de fácil acesso, o museu era a principal instituição dos acontecimentos de artes plásticas do Estado da Bahia. A partir de 63 o museu foi transferido para o Solar do Unhão, sem recursos e num local de difícil acesso, o museu foi perdendo a importância e passou por um período desativado. O mercado que teve sua primeira galeria criada na década de 50, a Galeria Oxumarê, pioneira na divulgação da arte moderna baiana, se manteve inexpressivo, incapaz de exercer o papel que lhe era destinado no processo cultural, aliado a uma ausência de crítica de arte e de colecionadores. A galeria Bazarte, uma iniciativa inédita em Salvador, nos anos 60, era o ponto de encontro e atelier de muitos artistas que estavam iniciando, incentivados pelo seu proprietário José Castro, muito mais um estimulador dos jovens artistas do que mesmo um marchand. A produção de arte girava em torno dos limites das primeiras manifestações modernistas, dentro de um esquema pictórico que reivindicava um retorno às chamadas raízes culturais, alheia às transformações que estavam acontecendo com passagem da vanguarda para a contemporaneidade.

O CONTEMPORÂNEO E O CONCEITUAL

Sem um trânsito de informações, sem um centro de apoio e sem uma política cultural que viabilizasse possíveis linguagens experimentais, entramos na década de 70 sem acompanhar as mudanças significativas que estavam acontecendo na produção artística e sua leitura. Entre 72 e 74 o grupo de estudos de linguagem da Bahia (Haroldo Cajazeira, Julio César Lobo, Orlando Pinho e Almandrade) distante dos problemas do circuito local, iniciou um estudo pioneiro na Bahia sobre semiótica, teoria da informação, filosofia da arte poesia concreta, concretismo neoconcretismo, arte conceitual... que levou a publicação da revista “Semiótica” em julho de 74, mas era uma iniciativa isolada, sem maiores atritos com o meio local.

Os artistas surgidos no início da década de 70, geração pós-AI5, tinham poucas oportunidades de circular seu trabalho e acompanhar o que estava acontecendo nos grandes centros: as discussões em torno da arte conceitual e o sistema da arte. Contava apenas com os salões universitários, que não trazia nenhuma perspectiva de troca de informações, eram salões domésticos, mostrava a produção local, defasada, sem abrir intercâmbio com outros Estados. O Instituto Goethe ficou sendo o principal centro cultural da cidade, principalmente para as manifestações artísticas experimentais, até o início da década de 80. As iniciativas eram individuais e improvisadas, como a exposição organizada por Glei Melo: “Paralelo 78” com a participação dos artistas: Humberto Velame, Mário Cravo Neto, Almandrade e o próprio Glei Melo, no Foyer do Teatro Castro Alves, em 1978. O principal agente do circuito, do ponto de vista de investimentos econômicos, era o mercado estatal, mas direcionado para a geração surgida antes da década de 60, já estabelecida no mercado nacional. Sem uma política de ação cultural necessária à preservação e renovação do patrimônio cultural, a cidade do salvador ficou aquém de uma cultura urbana. Contrário a expansão industrial no sul do País no início dos anos 50 que foi acompanhada de movimentos e eventos no campo das letras e das artes, como: Bienal de São Paulo, Concretismo, Cinema Novo, Bossa Nova. A modernização industrial baiana entre as décadas de 60 e 70, que contou com a implantação do Centro Industrial de Aratu e do Complexo Petroquímico de Camaçari, não teve correspondente no meio cultural local, por se tratar, possivelmente de expansão do pólo industrial São Paulo/Rio. A indústria do turismo, hegemônica, a partir da segunda metade dos anos 70, movida pela especulação do patrimônio natural, artístico e arquitetônico e as festas populares, deu impulso ao desenvolvimento do ramo hoteleiro, não estabeleceu o intercâmbio de experiências nem propiciou um regime favorável ao surgimento de uma cultural urbana que estimulasse as diferenças culturais.

Somente no final dos anos 70 o Museu de Arte Moderna reabre as portas para reassumir o seu papel no circuito da arte, com uma grande exposição, sem nenhuma seleção, a exposição cadastro, um equívoco, mas um equívoco necessário, era uma vitrine da arte baiana. Desde as Bienais não havia acontecido uma mostra desse porte, do ponto de vista de quantidade, não me refiro à qualidade, incomparável com as Bienais. Participaram das Bienais as principais tendências da arte de vanguarda brasileira e estava em um outro contexto que diz respeito aos agitados anos 60. Essa reabertura do circuito de arte, estava inserido dentro de um outro momento político que passava o país: abertura, anistia, liberdades democráticas. O governo do Estado, através da Fundação Cultural do Estado, inaugurava uma nova perspectiva cultural: O AI5 fechou a Bienal, a chamada abertura política reabre o museu e devolve a liberdade de expressão. Era o início de uma nova etapa, a redemocratização do País. Mas a exposição cadastro nas suas melhores intenções mostrou que estávamos distante da contemporaneidade, salvo alguns exemplos isolados, não tínhamos nem entendido direito a modernidade, estávamos às voltas com um moderno regional. A exposição “O Sacrifício do Sentido”, realizada por mim em 1980, foi a primeira exposição individual de arte contemporânea, do Museu de Arte Moderna da Bahia, com o apoio da Fundação Cultural do Estado.

O "NOVO CONTEMPORÂNEO"

Sem recursos necessários, sem a continuidade de uma política cultural mais ampla, sem um circuito de informações, a arte fica à parte dos interesses e das prioridades do Estado. Na década de 80, o mercado começa a se estruturar como um dos suportes do meio de arte, mas só em meados dos anos 90 ele consegue absorver as produções mais recentes que exigem um olhar mais apurado, e ate estimula a produção contemporânea, ainda iniciante. A galeria ACBEU, criada em 75, veio se constituir num importante espaço de divulgação da produção de arte não só para artistas emergentes, como também para artistas reconhecidos no mercado de arte. A Escola de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia, a principal escola de arte, se manteve à parte do processo cultural, sem tomar partido com relação às transformações das linguagens artísticas. Os Salões Baianos de 86 e 87 foram iniciativas para inserir a Bahia no cenário nacional e estabelecer um intercâmbio entre artistas, também sem continuidades. Reiniciado nos anos 90 com um novo formato, juntamente com outros projetos culturais e iniciativas de interesse nacional, fez do MAM da Bahia um dos principais museus do país. Diferente dos anos 70, que era mais amador, o mercado atualmente passou a ocupar um lugar de destaque no ambiente cultural que não pode ser encarado, apenas como um movimentador da economia, na medida que participa da formação de um público consumidor, estimulando colecionadores.

Na última década foi importante também para a dinamização do circuito a participação da iniciativa privada. O que mais se destacou foi a criação do Prêmio Copene de Artes Plásticas, patrocinando exposições de artistas que estavam contribuindo para a transformação da arte baiana, e publicações como “100 Artistas Plásticos Baianos” que veio suprir uma carência de documentação das artes plásticas na Bahia. O marchand passa a desempenhar um papel decisivo para uma possível história da arte baiana, claro do ponto de vista do mercado. O mercado deixa de ser um comércio de compra e revenda de obras, e passar a investir para o reconhecimento do artista e criar de certa forma um referencial para o comprador de arte, oferecendo-lhe uma margem de segurança para o seu investimento.

Depois dos anos 70, no contexto nacional e internacional foi o retorno da pintura, o reencontro do artista com a emoção e o prazer de pintar. Um prazer e uma emoção solicitados pelo mercado em reação a um suposto hermetismo das linguagens conceituais que marcaram a década de 70. Fazendo da arte contemporânea um fazer subjetivo, como se arte fosse um acessório psicológico ou sociológico. Troca-se de suporte nos anos 90 com o predomínio da tridimensionalidade: escultura, objeto, instalação, performance, etc. mas a arte não retomou a razão. Para uma condição pós-moderna o suporte não é o essencial, mas o significado. - Somente na segunda metade da década de 90, depois de instaurada a moda contemporânea o circuito de arte baiano absorve as novas linguagens que passam a conviver sem atrito com as tradições locais.

A convivência de várias produções no circuito de arte mobiliza um público consumidor de interesses diferentes, no que diz respeito às informações estéticas, o que vai de alguma forma movimentar o mercado de arte e estimular o desenvolvimento da produção artística. Hoje, o que podemos detectar como arte baiana, legitimada pelas instituições culturais e o mercado, não é mais uma unidade, mas uma variedade de trabalhos, muitas vezes contraditórios. Uma pluralidade de estilos e tendências, representando várias gerações de artistas. Circula no mercado de arte, das linguagens acadêmicas das décadas de 20 e 30, passando pelas décadas de 40 e 50, que correspondem ao primeiro contato da Bahia com o movimento moderno, até as manifestações em torno da contemporaneidade desenvolvidas nas últimas duas décadas. De um lado, temos uma produção determinada pela figuração regional, que utiliza os esquemas formais das primeiras experiências modernas; de outro, uma produção de “novos artistas contemporâneos” que ainda estão começando, muitas vezes incentivada pela ótica dos salões de arte, cujos trabalhos carecem de uma formalização decisiva. No meio: temos uma geração intermediária, surgida nos finais da década de 60 e início de 70, com uma diversidade de estilos, reconhecida como uma referência significativa para a pós-modernidade das artes plásticas baianas.