Dentre as muitas maneiras que o homem tem para inventar-se, Bez Batti escolheu a mais difícil por lidar com matéria dura, a pedra
Se é verdade que a obra de arte se basta a si mesma, ou seja, aparece pronta e completa aos olhos do espectador, isto não implica, porém, que ela tenha surgido diante dele num passe de mágica. Em realidade, toda obra de arte é resultado de um processo que tampouco começa com ela, com o primeiro golpe desferido na pedra. No caso das obras do escultor gaúcho Bez Batti, pode-se dizer que elas começaram num longínquo dia de sua infância em Volta do Freitas, na contemplação fascinada dos seixos rolados que as água do rio Taguari arrastavam consigo. Talvez a intenção oculta do escultor, ao trabalhar a pedra dura, ao esculpi-la e poli-la, seja recuperar a alegria daquele instante de identificação plena com a natureza.
Ocorre que o passado é irresgatável e irrepetível. Por essa razão, nem mesmo retornando àquele ponto do rio e olhando as mesmas pedras conseguirá fazer com que o tempo volte atrás: para resgatar o passado há que reinventá-lo, dar-lhe outro rosto, ou seja, apagá-lo. Assim, as esculturas que ele inventa não repetem as formas dos seixos rolados do rio Taguari; na verdade, as emoções da infância transformam-se na energia que gera, hoje, novas formas que não pertencem à natureza e, sim, ao universo humano da arte. Mesmo porque a natureza não produz arte, que é um dos meios que o homem inventou para inventar-se.
Dentre as muitas maneiras que o homem tem para inventar-se, Bez Batti escolheu a mais difícil por lidar com matéria dura – a pedra –, talvez por ser também a mais duradoura, como nos provam os achados arqueológicos mais antigos. Esculpir no basalto foi uma opção que ele fez após trabalhar na madeira, na resina, no mármore e no bronze; opção de quem não teme o difícil, de quem deseja pôr à prova sua capacidade de mudar em beleza a matéria real do mundo. E assim ele se torna, para realizar suas obras, um artesão, um operário que trabalha com marretas, cinzéis, ponteiros, bujardas, unhetas, rebolos de carbono-silício, disco adiamantado, pistolas... Mas estes são apenas os instrumentos materiais que lhe possibilitam domar o basalto explosivo, porque o fator decisivo e fundamental está no espírito do escultor, na sua necessidade de fundar na matéria rude e rígida da pedra um universo imaginário. Este universo veio se constituindo à medida que ele transformava em conhecimento e experiência sensível as qualidades do basalto, se era negro ou cinza ou vermelho, se era mais duro ou menos duro, a elas somando-se o eco dessas vozes da pedra – na verdade o seu silêncio – que nele, escultor, se entranharam e através dele passaram a nos falar.
Em arte, todo fazer é uma aventura imprevisível. Por isso, como o basalto é duro e o risco maior, Bez Batti, antes de atacá-lo, desenha a forma que pretende esculpir; mas com isso não exclui de todo o imprevisível que nasce da resistência da pedra à ação que a agride, embate em que se misturam a sabedoria adquirida pelo escultor e a aceitação do acaso que se infiltra em sua ação. E nasce deste diálogo, para além do previsto, o novo, que faz de cada peça uma expressão única, ainda que parte de um mesmo universo semântico. O artista se revela precisamente nesta capacidade de reconhecer, no resultado casual, a revelação da beleza, qualquer ela seja, e que vai transformando a matéria inumana do derramamento vulcânico em flor de poesia a enfeitar nossa vida.
Bez Batti ora inventa cabeças deliberadamente isentas de realismo, em que o despojamento anatômico intensifica a contundência da forma esculpida e polida, emprestando-lhe, ao mesmo tempo, uma significação arcaica que induz aos começos do homem; ora inventa inusitadas formas vegetais ou animais – frutos ou pássaros – em que mais chances tem de exercer sua inventividade formal, explorando com mestria os contrastes de texturas que a pedra possibilita, num diálogo do áspero e do polido, de formas doces ou agressivas, do acabado e do inacabado, de crateras, bolhas, estrias, construindo assim uma linguagem escultórica de grande riqueza sensorial e indiscutível originalidade.
Uma seleção de suas obras está sendo exposta no circuito de salas do Instituto Moreira Salles.