É necessário revisar a memória, recuperar o tempo perdido, reencontrar as tradições culturais que ontem formularam um real projeto e reinventar o futuro a partir do passado
Uma observação à margem. Apenas uma nota confinada entre ditados e censuras intelectuais e acadêmicas globais, e de seus replicantes locais: a discussão já obsoleta entre modernos e pós-modernos esqueceu a América Latina. Os intelectuais da América do Norte e da Europa sempre acabam esquecendo a América Latina. Destino. Só aceitam réplicas narcisistas deles mesmos: ontem A Santa Trindade e hoje o realismo mágico. Uma necessidade histórica colonial. Mas os latino-americanistas pós-modernos e os pós-modernistas latino-americanos têm se destacado também por sua pouca memória. Pensavam que pensavam desde qualquer lugar. Começavam seus romances em Manhattan e suas arquiteturas em Las Vegas. Não estavam no seu lugar. Por isso tampouco escreveram ensaios. Escreviam réplicas. Pensamento subalterno. E esqueceram bastantes coisas. Mas, principalmente de um detalhe. Sempre os detalhes são significativos. É que o primeiro a fundar o conceito crítico de pós-modernidade foi precisamente um escritor latino-americano. Pior ainda: foi um brasileiro. Uma espécie de índio. E como se isso fosse pouco, fê-lo num contexto selvagem e temível: a Antropofagia, o Movimento Antropofágico.
Não destaco que fosse o primeiro dos pós-modernistas, o destacável é que foi um conceito crítico de pós-modernidade. Superação antropofágica do pós-modernismo como ícone comercial da indústria cultural.
Oswald de Andrade, um dos líderes desta vanguarda, ou melhor, da vanguarda latino-americana, foi também o intelectual que mais cedo percebeu a crise dos valores civilizatórios que a sociedade industrial atravessava no momento de cristalizar os grandes sistemas totalitários modernos. Em 1945, este poeta e ensaísta introduziu o que provavelmente constitui a primeira definição de pós-modernidade. Mas é necessário dizer muito mais a respeito. Andrade criticou significativamente este “pós-modernismo” de uma perspectiva latino-americana, ou seja, do ponto de vista de sociedades que não tinham experimentado internamente as transformações totalitárias, inerentes ao desenvolvimento industrial pós-moderno, mas que, ao mesmo tempo, conheciam na pele suas conseqüências, sob as múltiplas variações da violência colonial e neo-colonial.
Esta condição pós-modernista era o horizonte histórico do qual partia a interpretação de época de Andrade. A pintura de Portinari, a música de Mignoni, e a arquitetura de Warchavchik e Niemeyer eram seus referentes principais. Todos eles haviam compreendido que o sonho artístico criado na Europa, nos anos vinte havia sofrido um colapso, e que em seu lugar se gerava uma nova civilização tecnocêntrica, radicalmente niilista no que se refere aos seus valores morais e civilizatórios, e por isso mesmo imperialista no que diz respeito às suas dimensões políticas e econômicas. E que, portanto, devia se aproveitar tudo aquilo que tivesse de benéfico, mas todo o resto devia ser deixado de lado.
O entorno mundial que Oswald de Andrade analisava em seus ensaios estava configurado pelo stalinismo e o fascismo europeus, a civilização tecnocêntrica e puritana dos Estados Unidos, o pessimismo existencialista alimentado pelas guerras mundiais e o que de uma perspectiva contemporânea deve ser considerado como o começo de uma era de genocídios industriais: o coroamento da destruição militar européia com o holocausto de Hiroshima e Nagasaki . É verdade que este pós-modernismo latino-americano não tem nada a ver com o dispositivo global e a banalidade comercial que tem distinguido o postmodern norte-americano dos anos oitenta e noventa do século passado.
Para Oswald de Andrade, pós-modernismo significava, antes, aquele limite histórico do projeto moderno, a partir do qual era necessária uma reforma civilizatória que integrasse as memórias da América antiga com um projeto humanizado de desenvolvimento social, sob a perspectiva filosófica de rejeição ao colonialismo patriarcal, cristão e tecno-cêntrico que definiam e distinguiam à civilização ocidental.
Naqueles anos, e pouco depois de realizar o conjunto arquitetônico de Pampulha, em Belo Horizonte, Niemeyer formulava basicamente o mesmo projeto de transformação civilizatória, através de uma arquitetura que se apresentava deliberadamente como superação, ao mesmo tempo, do funcionalismo e o racionalismo europeus, do seu dogmatismo cartesiano e seu monótono ascetismo, resumindo, o que em última instância denominou a mediocridade terminal do movimento moderno. E criou uma linguagem arquitetônica revolucionária em nome de uma revalorização do corpo humano, seu erotismo e sua imaginação: “uma arquitetura feita toda de sonho e fantasia, de curvas e grandes espaços livres de elementos supérfluos...”
Era o começo de uma nova idade.
Aos nomes que balizam esta nova época podemos incrementar outros do Brasil e da América Latina. A visão integradora de urbanismo, pintura, arquitetura e a natureza tropical nos projetos urbanísticos de Roberto Burle Marx, a assimilação das culturas africanas na música e na poesia, no cinema, a música e a arquitetura do Tropicalismo brasileiro; o diálogo filosófico e cosmológico com a espiritualidade das antigas culturas andinas na obra de José Carlos Mariátegui e José María Arguedas, a visão de uma realidade multicultural no México pela arquitetura de Diego Rivera e Edmundo O’Gorman; o projeto antropológico e político de recuperação das memórias e formas de vida das civilizações pré-coloniais de Guillermo Bonfil Batalla no México e Darcy Ribeiro no Brasil...
Todas estas correntes artísticas e intelectuais estavam intimamente ligadas às tradições européias do barroco, do classicismo e das vanguardas. A teoria da cultura de Oswald de Andrade partia de Nietzche e Bachofen. Lina Bo se inspirava na arquitetura do Expressionismo alemão. O projeto cultural de Arguedas pode ser definido como uma original síntese de Marx e de Herder. Mas todos esses projetos intelectuais afundavam, ao mesmo tempo, suas raízes na espiritualidade maia, inca ou amazônica, descobria a modernidade das suas linguagens mais antigas, e abriam, a partir de suas concepções sobre a vida humana e a natureza, uma alternativa a uma civilização mundial mortalmente ameaçada pela própria imensidade do seu poder tecnológico e financeiro.
Tudo isso a chuva e o vento levaram. Primeiro, as ditaduras fascistas decapitaram aqueles intelectuais e artistas. A seguir enterraram seus projetos. Finalmente veio o resto. Veio o culto pós-intelectual e pós-artístico de uma medíocre produção microanalítica e intertextual da todo-poderosa burocracia acadêmica global. E as múltiplas expressões do novo culto do espetáculo cultural pós-moderno. Houve expressões de resistência e uma amplíssima produção inovadora que suscitava a necessidade de novas estratégias intelectuais. Mas suas vozes foram confortavelmente apagadas sob os estridentes slogans da aldeia global: condição pós-histórica, realidade pós-política, culturas híbridas, sujeitos pós-intelectuais e o colofão terminal de uma idade pós-humana.
Parece que apenas uma categoria se salvou do naufrágio. Porém, seu resgate não deixa de ser, por si, inquietante. Em meio à débâcle econômica, política e intelectual que acompanhou as transições latino-americanas, sob a etiqueta de realismo mágico, o mercado global anunciava a venda daqueles mesmos prazeres proibidos do real-maravilhoso, nas selvas virgens dos alegres trópicos americanos, que na Europa tinham se malogrado sob os ambíguos slogans do surrealismo dos anos vinte e trinta.
A chuva e o vento levaram quase tudo. Primeiro foram os exílios. Depois, a banalização pós-moderna do final dos discursos e da história. O pós-marxismo, chamando com essa palavra inócua o pastiche de discursos reciclados pelo latino-americanismo norte-americano, fez o resto. Decretou sumariamente a morte desta tradição de artistas e intelectuais que haviam redefinido as linguagens artísticas e literárias do século vinte. Deram-nos por superados sob a bandeira dos novos agentes transterritoriais de administração financeira e cultural, da subseqüente hibridação das linguagens industrialmente manufaturadas, e da desconstrução terminal das soberanias culturais e políticas da América Latina.
Hoje, é necessário reverter este processo. Revisar a memória, recuperar o tempo perdido, reencontrar as tradições culturais que ontem formularam um real projeto, uma esperança concreta, reinventar o futuro a partir do nosso passado.
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