Fazer da arte expressão do efêmero é chover no molhado. Efêmeros somos nós mesmos e quase tudo a nossa volta
Certo dia, um artista espanhol que vivera no Brasil encontrou-me num avião da ponte-aérea Rio-São Paulo e aproveitou a ocasião para mostrar-me um livro com fotos de seus trabalhos. Um das fotos era a de um parque de grama verde que ele cobrira com manchas de tinta azul.
— Você não destruiu o gramado do parque, não?
— Claro que não. A primeira chuva lavou a tinta.
— E apagou sua obra.
— É...
Uma outra foto mostrava uma exposição, numa galeria envidraçada, de grandes raízes de árvores, ainda impregnadas de terra.
— O que fez com essas raízes depois da exposição? — perguntei-lhe.
— Joguei-as fora, respondeu ele.
— Quer dizer que de tudo que você tem feito não vai sobrar nada?
— Vivemos na civilização do efêmero, do descartável. Nada mais é feito para durar. A arte tem de seguir o espírito da época.
— Será que tem mesmo? — indaguei.
Não vou transcrever aqui a conversa que tive com o artista, que não foi longa. Mas, depois que ele voltou para sua poltrona, fiquei pensando na pergunta que lhe fizera:
— Tem a arte de seguir o espírito da época?
Ouve-se freqüentemente essa afirmação como se fosse uma verdade indiscutível. Mas, se a gente reflete um pouco mais, vê que a coisa não é tão simples. Por exemplo, o Expressionismo, surgido na Alemanha, que, no começo do século 20, se industrializava e se urbanizava, opunha-se tanto à indústria quanto à vida na cidade moderna, razão por que os primeiros expressionistas pintaram suas obras à margem dos lagos, em meio a florestas. É verdade que o Futurismo e o Construtivismo pretenderam criar a arte da sociedade industrial, mas o Dadaísmo negou radicalmente a racionalidade capitalista. Isso sem falar no Romantismo, que nasceu como contestação à objetividade e cautela da mentalidade burguesa do século 19, e no Simbolismo, que se opôs à visão positivista que predominava no final daquele século.
Essas considerações, como se vê, tornam insustentável a tese de que a arte tem de refletir o espírito da época. Até pode refleti-lo, mas nem sempre adequando-se a ele, já que uma das formas de refleti-lo é contestá-lo. Sem dúvida alguma, não teria sentido pregar uma arte desligada da época. Porém, ser atual não é simplesmente deixar-se levar pelo espírito predominante que, muitas vezes, pode ser contrário aos valores fundamentais da cultura e da própria arte.
A teoria da arte efêmera toca numa questão essencial, já que a arte tornou-se, através dos séculos, a expressão do que de mais permanente o homem criou. As obras de arte — os templos, as esculturas, os murais — do Antigo Egito são a própria imagem daquela civilização. O mesmo pode-se dizer da arte grega ou romana, ou da arte dos períodos mais próximos de nós, de tal modo que se chega a afirmar que não há civilização sem arte e que a arte é uma das expressões mais genuínas de cada povo e de cada cultura. Mas não apenas isso: a arte constitui a nossa memória e a nossa herança, pois através delas as civilizações nos ensinam e nos constituem como seres humanos.
Não é do meu feitio fazer afirmações retóricas, e gostaria que o leitor visse nestas minhas palavras o esforço para mostrar a importância da criação artística através da história humana, para que assim possa avaliar a atitude dos que se conformam em fazer uma arte deliberadamente efêmera. Isso só se explica como uma descrença na importância da arte e na capacidade criadora de quem faz tal opção.
Fazer da arte expressão do efêmero é chover no molhado. Efêmeros somos nós mesmos e quase tudo a nossa volta. Uma das maiores angústias do ser humano é precisamente a consciência de sua efemeridade. Por essa razão, o homem procura de todos os modos fundar alguma coisa que permaneça. A arte, que possivelmente não nasceu com essa missão, revelou-se o instrumento ideal dessa batalha contra a morte e a precariedade.
Trata-se, a rigor, de uma batalha vã, porque os próprios artistas morrem e morrem também as civilizações. Não obstante, as obras de arte restam como o testemunho de sua existência, de sua busca de beleza, de sua tentativa de inventar-se imortal. Na civilização da mercadoria e da obsolescência planejada dos objetos industriais, a tendência é aderir ao consumismo, que é a expressão mais aguda da alienação.
Para que o consumo se mantenha crescente, as indústrias têm de criar novidades (ou aparentes novidades), que determinam a obsolescência do que foi produzido na véspera. O efêmero, nesse caso, é um fenômeno provocado deliberadamente para manter crescentes as vendas. Um carro pode durar bem mais que um ano, mas é tornado “obsoleto” pelo lançamento do novo modelo — o “carro do ano”.
Como não poderia deixar de ser, à medida que o capitalismo desenvolveu suas potencialidades, ele influiu crescentemente sobre a atividade artística. O surgimento do mercado de arte transformou a obra artística em mercadoria e fez atuar sobre ela as mesmas forças que atuam sobre as demais mercadorias. Criou-se uma situação conflitual que todos os artistas modernos viveram, em maior ou menor grau. E a busca da novidade pela novidade tornou-se um valor da arte, em função do mercado. Mas como a obra de arte não tem a utilidade funcional da geladeira e do liquidificador, essa busca da novidade, nela, levou à sua desintegração formal e ao que hoje se chama de arte conceitual — a não-arte.
O Futurismo e o Construtivismo, ao tentarem expressar a modernidade, de fato contestavam os valores conservadores da arte de sua época e propunham novas linguagens artísticas, capazes de expressar um tempo novo. A arte conceitual não propõe nada. Apenas adotou, como fundamento ideológico, o caráter efêmero que o consumismo impôs à sociedade atual.
Mas o artista verdadeiro resiste ao oportunismo do momento, não desiste da audácia de tentar fundar o permanente e criar o maravilhoso.
O mundo seria muito pobre se nele não houvesse as obras criadas por Da Vinci e Rembrandt, por Velásquez e El Greco, por Goya e Cézanne. Já imaginou se o que restasse de nossa época fosse o mictório-fonte de Duchamp? Ou simplesmente nada?