Fonte: Revista Continente Multicultural

 

Há exatamente cinco séculos – no ano de 1504 –, Miguel Ângelo Buonarotti entregava à cidade de Florença uma obra-prima da escultura conhecida pelo nome do personagem que representa o David. Trata-se de uma obra de grandes proporções – cinco metros de altura e cinco toneladas de peso – que foi instalada na praça central da cidade. Mas – e isto é obvio – o que mais impressiona, nesta obra, menos que suas medidas, é, sim, a beleza da figura esculpida: um jovem de proporções harmoniosas, esculpido em mármore branco que, pela magia da arte, parece quase imaterial, como uma aparição luminosa.

 Pablo Picasso disse, certa vez, com a lucidez de sempre, que toda arte é atual. O que é verdade, mas não impede que nem todos os olhos de hoje vejam no David de Miguel Ângelo a mesma atualidade a que se referia o mestre espanhol. Os milhares de pessoas que visitam anualmente a Academia de Belas Artes de Florença, para admirá-la, vêem nela certamente uma das expressões máximas da arte de todos os tempos; para outros, no entanto, trata-se de uma obra importante, mas ultrapassada: expressaria uma concepção estética que já não tem cabimento nos dias atuais. De certo ponto de vista, tal afirmação é aceitável pelo fato mesmo de que toda obra de arte nasce historicamente condicionada, enquanto fato cultural, produto da criatividade de determinado indivíduo em determinado momento e circunstâncias. Mas isto não impede que as qualidades propriamente estéticas da obra se mantenham capazes de comover ou deslumbrar o espectador de hoje. Deve-se, por outro lado, admitir que certos fatores circunstanciais podem contribuir para esmaecer ou ressaltar aquelas qualidades. De qualquer modo, a obra de arte – e particularmente a obra-prima – guarda, na expressividade de suas formas, algo que permanece para além dos marcos de sua época. O David é prova disto.

 Para muitos estudiosos da arte, o David, embora obra da juventude de Miguel Ângelo, seria o ápice de sua realização artística. Quer concordemos ou não com tal juízo, a verdade é que esta escultura é, de certo modo, um momento excepcional da concepção estética de seu autor, para quem o belo se confundia com a pura espiritualidade, ou seja, produto da superação da matéria ou sua transfiguração em manifestação espiritual. Como observou Giulio Carlo Argan, Miguel Ângelo opunha o valor exclusivo da Idéia ao mundo da experiência, o qual é por ele excluído, do mesmo modo que o presente e a história. Sua obra resultaria, portanto, no triunfo do espírito humano sobre a contingência da materialidade e da morte.

 Isto parece suficiente, se se pensa no David ou na Pietà do Vaticano e mesmo no conjunto escultórico da capela dos Médicis, em Florença. Quanto a essa obra, não podemos dissimular a surpresa que nos causa o rosto inacabado da figura alegórica da Aurora, deixada em esboço – mero borrão na pedra. Por quê? Sei muito bem que a informação conhecida é que o escultor deixou, inconclusas, esta figura e ainda A Noite. Esta é certamente a explicação mais plausível, o que não nos impede de refletir sobre o fato de que, se para Miguel Ângelo esculpir era “tirar” matéria, debastar o mármore, deixar ali aquele rosto inacabado – que é o contrário da pedra tornada imagem, que é a matéria na sua rudeza intranscendente – dá o que pensar. Quer ele o tenha deixado assim, de propósito ou não, pode-se perfeitamente imaginar que ele não seria insensível ao choque que aquele contraste provoca: como uma ferida aberta, o rosto inconcluso tanto mostra o abismo insondável da matéria quanto a vitória da arte sobre a materialidade da pedra. Quase o mesmo se poderia dizer da série de esculturas conhecidas como Escravos, também deixadas inacabadas: nelas se assiste, por assim dizer, ao nascimento da obra de arte, encarnada naqueles corpos de homens que parecem libertar-se da inexistência, vindos do âmago da matéria para tornar-se expressão humana, obra de arte.

 A hipótese, por mim levantada, que sugere ter havido da parte de Miguel Ângelo a intenção de não terminar aquelas obras, não me parece inteiramente descabida, não apenas porque se insere na dialética de sua visão da arte e da vida, mas também porque a última escultura que concebeu – e que não concluiu –, a Pietà Rondanini, parece revelar, na anatomia do Cristo e no esboço da figura da Virgem, uma mudança radical em sua linguagem artística; mudança esta que consiste no abandono do estilo maneirista em favor de uma expressão mais contundente, mais dramática e, consequentemente, mais vinculada à emoção que à Idéia. Se admitirmos que Miguel Ângelo deixou a obra deliberadamente inconclusa, ela ganha outra significação e outra força expressiva: não apenas porque o inacabado da figura do Cristo, com seu tórax estreito e desfeito na imprecisão do mármore, torna-se a expressão mesma da dor e da miséria humana, como também uma tal opção estética ecoaria como a antecipação do gosto estético do futuro, que trocou a perfeição anatômica idealizada do David pela imperfeição da anatomia individual esculpida pelo desamparo e pelo sofrimento.

 O fato é que, no caminho seguido pela arte ocidental, após Miguel Ângelo, trocou-se a figura humana idealizada pela figura do indivíduo real. Mas a essa figura naturalista, sem idealização alguma, faltava fantasia e transcendência, sem as quais a arte se restringe a mera habilidade técnica, a habilidade de copiar a realidade. É a negação da arte em seu verdadeiro sentido. Por isso mesmo, sem poder retornar às formas ideais do classicismo, o caminho seguido pelos escultores modernos foi aprofundar a dramaticidade da forma enquanto forma, tornando-a expressão de arquétipos provindos da zona escura e insondável do Inconsciente. É o que se observa, por exemplo, nas obras de Rodin, Bourdelle, Giacometti ou Henry Moore.