O pintor Cícero Dias, 94, vive há 64 anos em Paris. Não se afrancesou. Aos seus ateliês sempre levou o microcosmo de Pernambuco. O clima dos engenhos de Escada. Uma rede. A miniatura de um bonde. O espaço vira tempo.
Atualmente está empenhado em fazer alguns ajustes no monumento que construiu no cais. Quer pôr uma pedra lá e algumas inscrições, restituindo o Recife aos arrecifes. Sobre isso, escreveu uma ode. Na verdade, uma espécie de pequeno poema em prosa, gênero que os franceses notabilizaram. Mas o de Cícero Dias tem a mesma rítmica assimétrica dos seus quadros, a mesma viagem onírica, nada linear.
Cícero Dias saiu do Recife, em 1937. O Estado Novo, fazendo justiça à sua própria “polícia do pensamento”, conseguiu expulsar alguns dos melhores talentos da época. O exílio rendeu ao artista bons frutos, embora colhidos com dificuldade. Já chegava na Europa “amadurecido para o sofrimento e a poesia”. Ditadura no Brasil, Guerra Civil na Espanha. Depois, era o mundo inteiro que se matava. Ele foi preso.
Militou contra o nazismo.
Nos anos heróicos da Guerra Civil espanhola tornou-se amigo íntimo de Picasso, que se fez padrinho de sua filha Sylvia e no seu nome manteve durante vários anos um telefone. Mas o resultado menos pessoal disso foi que graças a um pedido do seu amigo Cícero Dias é que o pintor espanhol autorizou a ida da sua Guernica para o Brasil, na Bienal de São Paulo (12 de dezembro de 1953, com direção artística de Sérgio Milliet).
Picasso, Éluard, Péret, Cendrars, Paulo Prado, Mário de Andrade, Villa-Lobos, Murilo Mendes, Gilberto Freyre e os muitos etcéteras da longa lista de amigos famosos de Cícero Dias não caberiam aqui. Muito menos transcrever os comentários - vários deles inéditos - sobre a sua arte. Como Di Cavalcanti, o primeiro a incentivar a sua mudança do Brasil para a França:
“Sempre admirei a pintura de Cícero Dias. Sou mesmo um dos seus primeiros admiradores e nunca neguei o grande lirismo de seus quadros que bem traduzem o Nordeste - a vida terrena e poética de velhos engenhos de Pernambuco. (...) O valor da obra de Cícero Dias perdura límpido e espontâneo”.
Cícero Dias não só atravessou quase todo o século 20 - ele nasceu a 5 de março de 1907 -, exercitou as suas principais escolas de arte, como Surrealismo e Abstracionismo. Mas, tudo de maneira personalíssima. Com isto se quer dizer menos adesão às teorias estéticas que resultaram em programas, palavras de ordem e manifestos, e mais o livre exercício da arte. Onirismo, lirismo, ludismo e erotismo definem melhor a sua arte que todos os ismos modernos.
Ele, que viu duas passagens do cometa Halley, sabe que os calendários, como as escolas e os gêneros, são invenções arbitrárias. O tempo, como a sua pintura, clama pelo desmedido. Como uma cor que se alastrasse de cores brincalhonas. Uma febre de mar que não se doma. A arquitetura que cursou e abandonou por antipatia às matemáticas não lhe ensinou nenhuma lição de arte. A sua professora, além da natureza e do seu próprio instinto, foi a tia Angelina.
Sendo a pintura uma vocação da vida inteira, expressou-se com um bom humor e um sabor boêmio poucas vezes tão vigoroso em toda a arte moderna. Esse espírito de boêmia e liberdade que os estadonovistas e os nazistas não conseguiram aprisionar reflete-se não somente nos seus quadros, mas na força sorridentemente livre da sua poética e nos textos que lhe dedicaram amigos, como Manuel Bandeira:
“No hall do Palace o pintor/ Cícero Dias entre o Pão/ de Açúcar e um caixão de enterro/ (é um rei andrógino que enterraram?)/ toca um jazz de pandeiros com a mão/ que o Blaise Cendrars perdeu na Guerra.// Deus do céu, que alucinação!/ Há uma criatura tão bonita/ que até os olhos parecem nus:/ Nossa Senhora da Prostituição.” (MH)
Fragmentos de uma entrevista
Engenhos de cultura
Eu comecei a pintar como discípulo de uma tia minha, pintora, no engenho Contendas. Ora, o barão de Contendas tinha uma verdadeira escola. O que era curioso naqueles engenhos, o Contendas, o Noruega, era o que eles tinham como fonte intelectual: Tobias Barreto, Clóvis Bevilacqua e o autor do Código Civil, Pontes de Miranda. Quer dizer, aqueles engenhos foram centros de cultura muito ampla.
Estado Novo
Eu saí de Pernambuco por causa do Estado Novo. Eu recebi uma carta de Di Cavalcanti, que já estava lá em Paris, me dizendo: “Venha pra cá, saia daí”. Só podia. Havia polícia pra cá, polícia pra lá. Presos na rua da Aurora ou na Casa de Detenção. Mas havia muitos também que não aceitavam esse tipo de situação e por esse mesmo motivo morreram por aqui, como foi o caso do Ulysses Pernambucano. Quando prenderam o Ulysses Pernambucano, eu tenho a impressão de que ele não recebeu apoio moral suficiente para resistir. Então morreu, coitado.
Paul Eluard
A minha amizade com Eluard saiu de uma briga entre ele e Breton. Mas, em 1938, época da minha primeira exposição em Paris, eles ainda se davam. Eu nunca fui muito próximo a Breton, sempre o julguei um tipo, não pretensioso, mas muito senhor de si. Quando acabou a guerra da Espanha, muitos dos surrealistas que ainda eram amigos brigaram. O grupo todo se dividiu. Uns ficaram republicanos, outros, comunistas, outros, trotskistas. E Eluard, neste tempo, ele pegava muita briga.
Bom, eu tinha deixado muitos quadros no ateliê de Picasso, e entre eles um chamado A Mulher na Janela. Quando Eluard viu o quadro, emocionou-se. E pediu a Picasso para conhecer o pintor que havia pintado aquele quadro. Ele então me procurou, e eu sabia que ele não me procurara antes pensando que eu era muito ligado a Breton. Aí eu expliquei a Eluard: “Eu sei que você tem essa expectativa, mas não é verdade. Eu não detesto Breton, mas também não tenho nenhuma aproximação com ele”. A partir daí, ele se tornou muito amigo meu.
Um modelo do cosmos
Havia mais ligação entre a arte moderna e a de séculos anteriores do que muita gente pensa. Picasso falava muito em Cézanne. Quando ele fez, por exemplo, Demoiselles d’Avignon, fez influenciado por Cézanne. Ora, Cézanne, por sua vez, tinha admiração por Giotto, um pintor do século 13, amigo de Dante.
Quando eu me preparava para fazer o desenho da praça do Marco Zero, encontrei uma opinião de Proust dizendo: o século 13 foi um dom de Deus. E foi. O Ulisses, de James Joyce, copia a estrutura da Divina Comédia. Então, eu comecei a ler sobre o século 13. Eu acho extraordinário esse caldeamento, desde o século 13 ao atual.
Então, quando eu fiz essa praça, li muito essa história do século 13. E o que houve no século 13, 14 e 15? Só descobrimos o mundo todo por causa das estrelas. O pessoal olhava para o céu, era a vida do homem. Eu aí tinha que recorrer a coisas extraordinárias, às estrelas, ao mapa mundi; foi assim que eu concebi o desenho da praça. O desenho não é mais do que o reflexo do céu, um modelo do cosmos.
Casa-Grande & Senzala
Quando Gilberto teve que procurar pintores para ilustrar Casa-Grande & Senzala, eu era o mais chegado a ele, e o que estava mais por dentro da matéria, por causa dos engenhos, dessas conversas todas. Então eu procurei me esmerar bem.
Mas os desenhos para Casa-Grande & Senzala são apenas de informação, de forma que são muito chatos, entendeu? Você não tem liberdade. Por exemplo, a casa-grande do engenho Noruega, tudo dela está lá no desenho.
Infelizmente a casa caiu, no tempo em que era governador Carlos de Lima Cavalcanti, que, por causa de brigas políticas, negou dez contos para preservá-la. Todas essas casas-grandes caíram. Essas casas todas, inclusive Jundiá, onde nasci, caíram.
Eu vi o mundo...
ele começava no Recife
Para fazer esse painel, de quinze metros, tive dificuldade com o material. Mas imagine que ele foi feito em 1931, e que eu levei o painel para Paris; lá, procuramos o maior técnico na França que pudesse dar uma opinião. O técnico bateu no meu ateliê em Paris, eu apenas estava desenrolando o painel, ele pegou na textura e disse: “Isso é para nunca acabar”. O painel foi feito em papel craft, que existe até hoje. Feito com cola de peixe, coisa rara também. Depois, com a minha estadia na Europa, descobri que pintores como Rubens, por exemplo, pintavam sobre papel.
Destruição
Quando levei Eu vi o mundo... para São Paulo, para a Bienal, havia uma parte muito lúbrica. Foi um sujeito lá e rasgou. Nós sabemos quem foi. Foi um dos grandes de Pernambuco, mas não posso dizer o nome. Nunca disse a ninguém.
Outro caso de depredação foi quando eu fiz minha primeira exposição no Rio, em 1938; teve um sujeito que entrou lá com uma navalha. Aparecia dessas coisas. Por exemplo, Oswald de Andrade chegou a entrar em luta corporal com um sujeito que ia atacar os quadros de Tarsila.
Arte abstrata
Na época do governo Barbosa Lima, eu estava chegando da Europa, com as idéias todas, e Antônio Balthar tinha feito o prédio da Fazenda de tal maneira que todos pudessem pintar. Então, fui pintor de um mural abstrato.
Hoje publicaram um livro sobre arte abstrata no Brasil onde dizem que o pioneiro da arte abstrata em mural no Brasil fui eu, com aquele painel. Mas, não foi só na América do Sul, como eles dizem, podia ser de todas as Américas, porque na América do Norte talvez ainda não tivesse.
Espírito poético
Além de Picasso, de Cézanne, eu tive muita influência de poetas. Concordo que sem poesia é impossível a vida do homem. Eu até prefiro as críticas e avaliações sobre a minha arte feitas por poetas do que por críticos. Porque a crítica de arte é analista demais e muito estreita. Quando você tem um poeta que escreve sobre você, ele descobre coisas fantásticas, ele acompanha bem o seu espírito poético.
Villa-Lobos
Villa-Lobos era meio louco. Eu desenhei muito para ele. Em Paris, ele ia muito a meu ateliê. Ele pegava mitologia índia, da Amazônia, saci pererê, que só tinha uma perna, o outro com as *****s viradas não sei para onde... Todas essas mitologias, de índio tudo aleijado, para organizar um balé com isso; o coreógrafo italiano virou para ele e disse: “Maestro, como é que podemos dançar um balé com gente tão aleijada, sem perna?” Ele foi embora, disse que o homem era burro. Levou o balé para Milão. Lá foi vaiado.
Outra: um sujeito fez um imóvel lá em Paris, Edifício Villa-Lobos. Ele chegou lá, chamou o porteiro e perguntou: “Onde está o meu apartamento?” O porteiro disse que não tinha. Ele aí queria brigar. Foi para a rua, encontrou um sujeito que trabalhava por perto e disse: “Olhe, eu lhe pago e você vem comigo, vamos pegar uma picareta e tirar a placa com o meu nome”.
João Cabral de Melo Neto
Conheci João em Pernambuco, nos tempos áureos... Eu até discordava de João porque às vezes eu pintava o universalismo, e o João procurava mais o lado regional. Ele não queria o universalismo. Depois, uma coisa que eu achava imperdoável, uma coisa triste, era o Vicente do Rego Monteiro, o Manoel Lubambo, fascistas, pedindo sempre a nossa prisão e mandando raspar a cabeça de Graciliano Ramos, essa coisa toda. De forma que eu me afastei muito dessa gente... E João Cabral achava que Vicente tinha explicações... Não havia explicação nenhuma, abertamente eles tinham um jornal chamado Fronteiras, e você vai ver lá eles pedindo a prisão minha e de Gilberto Freyre.
Alexandre Bandeira, Homero Fonseca, Marco Polo e M
Obs. Cicero Dias faleceu em 28/01/2003