A Arte primitiva ou naïf é tipicamente brasileira e está fortemente vinculada à arte popular nacional, mas ainda não é devidamente valorizada internamente. Cabe lembrar que se convencionou chamar arte primitiva a que é produzida por artistas não-eruditos, a partir de temas populares geralmente inspirados no meio rural. Já quando o tema é urbano, costuma-se utilizar o termo naïve ("ingênuo", em francês), que se pronuncia "naíf", e ganha especial relevância entre artistas franceses e haitianos para designar os pintores que rejeitam as regras convencionais da pintura ou não tiveram acesso a elas.
Os dois estilos, porém, têm em comum as cores vivas e uma imaginação, estilização e poder de síntese levados para a tela com uma técnica aparentemente rudimentar. Em linhas gerais, pode-se dizer que a arte naïf brota do inconsciente coletivo, mantém-se em constante renovação e se deixa penetrar por influências eruditas, embora conserve sua natureza própria. Sabedoria e sonho se irmanam em obras difíceis de definir sob uma única catalogação.
Mas o que seria essa pintura de raízes populares? Para o crítico de arte Américo Pellegrini Filho, a arte popular se caracteriza pelo autodidatismo, por técnicas rudimentares adquiridas de modo empírico, pela espontaneidade e liberdade de expressão, e informalismo (ausência de aspectos formais acadêmicos, como composição, perspectiva e respeito às cores reais).
A arte naïf vem, pouco a pouco, ganhando espaço na mídia. Em 1974, os franceses lançaram um selo com um quadro do mais famoso dos pintores naïfs, Henri Rousseau, enquanto, na Suécia, caixas de fósforos já foram enfeitadas com imagens criadas por Skum, um pintor ingênuo esquimó. Além disso, há museus especificamente de arte naïf, em Laval, na França; em Luzzara, na Itália; em Figueras, na Espanha; em Esquel, província de Chubut, na Argentina; e, em Heblime, na Iugoslávia.
MárioTavares Chicó, em seu Dicionário da pintura universal, localiza os pintores naïfs "perto dos pintores amadores e confundindo-se, muitas vezes, com eles, relacionados também com os criadores de uma pintura popular, os primitivistas distinguem-se por uma posição estética definível à margem da arte erudita, tradicional ou inovadora. Esta é encarada por eles com alguma dose de ingenuidade, não apenas imitativa (caso comum nos amadores) – mas capaz de revelar, por frescura de imaginação, novas possibilidades expressivas, influenciando assim a arte contemporânea."
O alfandegário aposentado Rousseau (1844-1910) foi valorizado pelos intelectuais de vanguarda franceses, como o dramaturgo Alfred Jarry, o poeta Guillaume Apollinaire e os pintores Robert Delaunay e Pablo Picasso, e influenciou os surrealistas. Graças a ele, outros pintores primitivistas foram se impondo, conquistando a crítica e adquirindo uma posição dentro da História da Arte. Basta citar que o Museu de Arte Moderna de Paris tem uma sala especial para os naïfs, onde se encontram, ao lado de Rousseau, Vivin (1861-1936), Séraphine (1864-1942) e A. Bauchat (1837-1938), entre outros.
Especificamente em relação a Rousseau, o ensaísta Robert Goldwater, em Primitivism in Modern Art, vê no pintor francês o uso de uma tradição formal aceita para fins puramente estéticos; ou seja, o artista cria porque isso lhe dá prazer. É uma necessidade vital. Por isso mesmo, geralmente não existe a preocupação em se filiar a escolas ou de freqüentar cursos acadêmicos. "Essa atitude comum em relação a diferentes materiais plásticos gera admiração da crítica tanto em relação aos aborígenes como aos novíssimos primitivos", diz o pesquisador.
Para o crítico de arte Romildo Sant’Anna, professor do Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas da UNESP, câmpus de São José do Rio Preto, há um diálogo entre a arte dita erudita e a naïf: "Esses artistas populares, ingênuos e primitivos são alicerces da cultura. É através dos naïfs que muitas vezes a chamada Arte Oficial vai se alimentar; é bem forte que germina a seiva mais cristalina, e dela se bebe, quando nos cansamos de viver num mundo de ilusões e aparências. É nessas pinturas que fala a voz do excluído. Assim como fazem nos países realmente cultos, devemos dar vivas aos naïfs do Brasil". "A arte naïf documenta novas formas e novas maneiras de aprender e expressar os mistérios insondáveis da vida com extraordinária vitalidade, espontaneidade e beleza", conclui João Spinelli, professor do Instituto de Artes da UNESP, câmpus de São Paulo.
Nos EUA, a pintura primitivista nasceu da tradição dos limners – retratistas amadores dos séculos XVII a XIX – e foi adquirindo posição de relevo graças a nomes como Grandma Moses (1860-1961), J. Frost (1852-1929), H. Poppin (1888-1947) e J. Kane (1860-1934).
O que aproxima todos esses artistas, sejam franceses, norte-americanos ou brasileiros, é a consciência da autonomia do espaço pictórico, o uso expressivo e ornamental das cores, o toque onírico que diferencia o universo criado da realidade e o sopro poético presente nos quadros.
Na III Trienal de Arte Popular de Bratislava, em 1972, na então Tchecoslováquia, por exemplo, o Brasil se destacou ganhando o prêmio de melhor representação nacional. "Na ocasião, surgiu uma nova tentativa de nomenclatura, porque toda arte popular foi agrupada sob o nome de arte ínsita, do latim insatus, inato. No entanto, nos últimos anos, o termo naïf superou todos os demais, sendo aceito internacionalmente", conta o crítico Geraldo Edson de Andrade.
Há até quem diga que os quadros dos primitivistas se assemelham à pintura de crianças. Anatole Jacovsky discorda e estabelece as diferenças: "A pintura das crianças não é obra de arte. Para elas, não passa de divertimento, enquanto para os primitivistas trata-se do objetivo de suas vidas. Eles abolem o tempo e remontam às fontes, a esses paraísos infantis perdidos e, afinal, reencontrados. O naïf começa onde morre a criança".
O crítico de arte Martin Green, ao discorrer sobre arte naïf, afirma que a arte conhecida como primitiva é privada de passado e futuro. "Apropria-se do instante e o imortaliza para sempre. É fruto de uma pura tensão artística, não de uma preocupação comercial: o que aparece é o sentido de alegria e estupor perante o mundo, como se o estivéssemos olhando pela primeira vez. Essa pintura é o primeiro bater da existência."
O ensaísta iugoslavo Oto Bihalji-Merin, em El Arte Naïf, julga que a essência e o caráter da arte naïf brotam no campo anímico da inocência e da simplicidade. "Se o artista renuncia a elas, põe em perigo o clima específico de sua arte. Ao longo dos anos ou décadas, pode aperfeiçoar sua técnica e mover-se com maior liberdade em termos da composição. Porém, se sua sensibilidade e receptividade diminuem, começa a se repetir e a produzir em série, podendo ocorrer a perda da ingenuidade e da espontaneidade imaginativa. O interessante da pintura naïf é que se trata de um estilo que não se aprende. Ele nasce com quem o executa. Cada pintor naïf tem um estilo próprio e nos obriga a entrar em contato com a criança pura que existe em nosso interior. Isso porque as imagens naïfs podem tanto ser fantasias delirantes, como caricaturas grotescas ou hiper-realistas."
Como não é pintura acadêmica, não se estuda, mas se sente. Marcada por imagens do cotidiano e pela pureza de traços, cores e formas, a arte naïf espalha-se por França, Haiti, Iugoslávia, Itália e Brasil, mantendo um mercado bem específico. "A arte naïf, ao não se incluir no variante vaivém dos estilos, manifesta-se como uma arte submetida às suas próprias leis. Não é uma arte contra os modernos, apenas uma parcela artística mais subestimada", diz Bihaljin-Merin. "Na obra dos pintores naïfs, não há perspectiva, o desenho é rústico e quase não há mistura de cores, já que eles não têm conhecimento técnico", diz Geraldo Edson de Andrade, co-autor, ao lado de Jacques Ardies, do livro Arte naïf no Brasil.
Para Ardies, a arte naïf é um estilo que existe há milênios, desde quando o homem desenhava cenas de caça nas paredes das cavernas. "Os artistas naïfs são forçosamente autodidatas no sentido que eles não receberam influência ou dirigismo de um professor de Belas Artes. Eles começam a pintar por impulso e procuram resolver as dificuldades técnicas com meios próprios, sendo perdoados quando as suas figuras não são perfeitamente desenhadas ou quando aparecem erros de simetria e perspectiva. Porém, a experiência da prática aos longo dos anos pode proporcionar ao pintor naïf uma técnica apurada e certeira", explica Ardies.
"A pureza com que pintam mostra que eles não estão querendo provar nada, apenas exprimir o sentimento por meio do pincel. Essa é a força da arte deles", completa Lucien Finkelstein, fundador do Museu Internacional de Arte Naïf (Mian), no Rio de Janeiro, criado, em 1995, num casarão do Bairro de Cosme Velho, com o maior acervo do mundo no gênero, reunindo cerca de 8 mil obras de 130 países, incluindo aqueles em que a arte naïf é mais forte, como Iugoslávia, Haiti e Equador, e de todos os Estados brasileiros.
Para Ardies, especializado em arte naïf desde 1979, o destaque da arte primitivista reside justamente na total liberdade de criação do artista, que se expressa com espontaneidade e com inocência. "Em geral, o artista naïf oferece uma visão interior, repleta de cor, criando um mundo para si próprio. No Brasil, o movimento cresceu a partir de 1937 com Heitor dos Prazeres, Cardosinho e Sílvia. A arte naïf brasileira, portanto, não toma emprestada a inspiração da vanguarda parisiense, mas reflete uma realidade nacional. Sem mimetismo, extremamente rica e variada, é autêntica e, na maioria das vezes, otimista e alegre. Ela reflete o país tropical, generoso em sua vegetação, aberto em sua gente. Não existe país que melhor sirva a este estilo. Hoje, pela diversidade entre as regiões e os povos que a compõem, a arte brasileira tem seu lugar de destaque no cenário mundial".
Qualquer estudo sobre a arte naïf brasileira deve passar por Heitor dos Prazeres (1898-1966), parceiro de Noel Rosa na célebre música Pierrô apaixonado e premiado na I Bienal Internacional de São Paulo, em 1951, em cujo júri estava o crítico e historiador Herbert Read, um dos nomes mais respeitados da historiografia da arte mundial.
Em Bienais posteriores, Grauben Monte Lima, Elisa Martins da Silveira e José Antonio da Silva estiveram presentes. No exterior, a pintora Iracema Arditi foi uma das maiores responsáveis pela divulgação da pintura naïf, principalmente pelas várias exposições que organizou na França.
José Bernardo Cardoso Jr., o citado Cardosinho (1861-1947), admirado por Portinari e com uma obra no Museu de Arte Moderna de Nova York (Moma); Chico da Silva (1910-1985), descendente de índios, menção honrosa na Bienal de Veneza, em 1966; o índio Amati Trumai, descoberto pelos irmãos Villas-Boas no Parque Indígena do Xingu, e Antonio Poteiro, oleiro de profissão e ceramista de talento que chegou às telas estimulado pelos pintores Siron Franco e Cleber Gouveia, são nomes obrigatórios da arte naïf nacional.
Há ainda Maria Auxiliadora, (1935-1974), doméstica e passadeira descoberta pelo especialista alemão Ronald Werne na Praça da República; Lia Mittarakis (1934-1998), que ao ter um de seus quadros como capa da revista Time dedicada à ECO -1992, conferência mundial do meio ambiente realizada no Rio de Janeiro, foi a primeira artista brasileira a ter uma obra reproduzida nessa revista; Elza O. S., célebre por pintar jovens vestidas de noiva, sonho pessoal que nunca realizou; além de Rosina Becker do Valle Pereira, cuja inspiração reside no folclore brasileiro, e a ex-secretária executiva Helena Coelho, artistas ligados, desde 1992, às Bienais de Arte Naïf do Brasil, realizadas pelo Sesc de Piracicaba. "Nossa idéia é ser um centro de referência dessa arte no Estado", afirma Antônio do Nascimento, curador da Bienal Naïfs do Brasil,
"A descoberta do mundo das tintas e dos pincéis acaba se transformando, para uma parcela significativa desses artistas, em uma ótima oportunidade de serem aceitos no seu grupo e de se integrarem à sociedade. E, quando conseguem, aumenta a possibilidade de eles serem reconhecidos e valorizados, independentemente de suas origens, dos seus padrões culturais e dos seus bens materiais", argumenta Nascimento.
O psicanalista Carl Jung chegou a afirmar que "Os pintores naïfs representam os últimos ecos da alma coletiva em vias de desaparecimento". O colecionador Lucien Finkelstein concorda: "Afirmo com plena convicção que, fora de nossas fronteiras, os pintores naïfs do Brasil são autênticos porta-bandeiras da pintura brasileira de todas as tendências e de todas as épocas".
A grande questão é o que especialistas em arte, como os conceituados Louis Pauwels, Selden Rodman, Max Fourny, Anatoli Jacovski, Heléne Renard e H. Wiesner vêem na obra naïf. O crítico Enock Sacramento responde: "Experts de visão acurada, freqüentadores das Bienais de Paris e de Veneza, da Documenta de Kassel e da FIAC, perceberam logo que a maioria das manifestações da vanguarda mundial não levava a nada, apesar de glorificada momentaneamente pela mídia e apresentada como ‘arte de ponta’. Pouco a pouco, os críticos internacionais estariam mais dispostos a aceitar a arte naïf". "Eles se tornaram, de fato, mais sensíveis ao fascínio da arte bruta, sincera, espontânea, calorosa, colorida e fortemente temperada do pintor naïf", finaliza Sacramento.
"O Brasil é um berço da pintura ingênua. As solicitações sensoriais criadas por um país tropical e por seu folclore, ligadas à liberdade gerada pela arte moderna, fizeram surgir nos campos e nas cidades milhares de ingênuos — a maioria sem qualquer expressão. Sobram poucos, uns trinta, cujas qualidades vão além do simples colorismo bruto e das incorreções anatômicas para chegarem à arte propriamente dita", avalia o crítico paulista Flávio de Aquino.
Encontrar talentos no universo dos chamados primitivos é um grande e fascinante desafio. Para isso, é preciso conhecer o maior número possível de artistas do Brasil e do Exterior, buscando as características que tornam alguns desses pintores expoentes do que há de artisticamente melhor, dando-lhes destaque não como meros naïfs, mas colocando-os entre os principais nomes da arte universal, independente de categorias, estilos e nomenclaturas.
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