As manifestações artísticas africanas traduzem um universo de mitos e símbolos, de práticas mágicas e rituais
A exposição de arte africana exibida no Centro Cultural do Banco do Brasil, no Rio, reunindo mais de 500 peças, dá oportunidade a uma série de reflexões provocadas tanto pela riqueza expressiva das obras mostradas quanto pelo que significam como expressão de um universo cultural muito distinto do nosso. E, além do mais, porque esta arte teve papel importante na renovação da arte ocidental no começo do século 20.
A primeira observação que fiz, enquanto visitava a mostra, foi a constatação da diferença de atitude dos produtores daquelas obras e a dos artistas ocidentais: se é certo que as cabeças femininas, os relevos em latão ou as figuras esculpidas em madeira exibem o evidente propósito de alcançar um alto nível de harmonia e expressividade – o que igualmente caracteriza a atitude do artista ocidental –, não resta dúvida, por outro lado, que o objetivo ali não é produzir obras de arte e, sim, satisfazer necessidades sociais (tribais, coletivas), vinculadas a uma concepção mágica do real. É justo admitir que, de algum modo, a arte medieval européia cumpria papel semelhante, quando concebia suas esculturas e afrescos para expressar a visão religiosa da comunidade.
A diferença reside em que a concepção mágica do mundo, em comparação com a concepção religiosa, reflete um relacionamento entre o homem e o mundo bem menos objetivo, bem menos abstrato; por isso mesmo, a carga de subjetividade, que impregna as obras da arte negra, é de tal densidade que se afigura como a materialização da subjetividade profunda, inconsciente, daqueles homens. Em lugar, como no caso da arte religiosa, da criação de formas de representação ou alegóricas, temos aqui – especialmente nas máscaras – a criação de objetos mágicos, que não visam catequizar ou converter o espectador mas, de fato, envolvê-lo na magia, fazê-lo participar do ritual, oferecer-lhe a oportunidade de defrontar-se com seus demônios interiores e exorcizá-los.
Impressiona, no conjunto dos objetos expostos, ainda que de épocas diferentes e de nações diversas, algumas características comuns e constantes como a necessidade de dar a cada um deles – seja um vaso, um facão, um instrumento musical – expressão decorativa e significação simbólica. É como se, naquelas comunidades, nenhuma ação, nenhum gesto, nenhum momento da vida, ocorresse fora do universo significativo que constituía a cultura da tribo. Esta observação vem confirmar a tese de que o homem, menos que um ser natural, é um ser cultural, e mesmo vivendo na floresta e em condições rudimentares ou primitivas, já elabora um universo de mitos e símbolos, de práticas mágicas e rituais, que constituem o seu verdadeiro habitat.
Outro aspecto importante a ressaltar é o caráter eminentemente não-realista destas manifestações africanas: não apenas as figuras humanas ou animais nunca pretendem imitar a forma natural ou copiá-la, como também a constituição daquelas figuras – com exceção às feitas em cerâmica ou metal – se vale freqüentemente dos mais variados materiais – como sementes, conchas, cascas de árvores, miçangas –, o que as enriquecem plástica e simbolicamente, uma vez que tudo possui significação mágica ou ritualística. Essa unidade profunda, que liga todos os elementos e atos da vida, fazia com que estes objetos "artísticos", que agora contemplamos num outro contexto, tivessem uma importância vital para a comunidade em que surgiram. Estamos longe da arte como finalidade em si mesma, de que falaria Kant em sua Crítica do Juízo Estético, nos primórdios de processo artístico que iria desembocar na arte moderna.
Não obstante, a arte moderna - pelo menos em alguns de seus aspectos – está mais próxima desta arte primitiva africana e, por outros aspectos, mais distante. Sem dúvida alguma, Les Demoiselles d’Avignon, de Picasso, tem mais afinidade com a escultura negra da Namíbia do que com a Mona Lisa de Da Vinci ou mesmo La Maja Desnuda, de Goya. Por outro lado, na sua essência, a obra picassiana pouco tem a ver com a arte negra, além de algumas características exteriores e outras, interiores, que apenas lhe são afins.
Vamos examinar melhor esta questão. Sem dúvida, basta olhar as Demoiselles para logo perceber que aquelas figuras derivam de alguma máscara ou escultura negras: a estilização brutal, a simplificação geometrizante da anatomia, etc., são características de muitas das obras que vimos na exposição do CCBB. No entanto, uma coisa que também está evidente no quadro de Picasso é sua desvinculação com um universo tribal e mágico, ou seja, com a vida real de uma comunidade determinada. Pelo contrário, a obra do espanhol, ao ser concebida, expressou a ruptura com os valores estéticos vigentes e, portanto, com a comunidade artística: ela era a expressão extremada do individualismo do artista, de sua liberdade expressiva que se queria descompromissada com todo valor estético e social vigente. A forma primitiva da arte negra foi por ele utilizada para contrapor-se ao bom gosto artístico e como uma alternativa à expressão pictórica em voga.
Expressão extremada de individualismo. Este é o fator que distancia drasticamente as Demoiselles da arte africana, expressão de uma visão de mundo comum ao grupo social ou nação em que ela surgiu. E, neste particular, a obra de Picasso é apenas um exemplo, uma vez que a arte moderna, como um todo, expressa esta desvinculação do estético com o social, ou seja, com os valores e a prática vigentes na vida cotidiana. Se a máscara africana, apesar da aparência fantástica, é parte da prática mágica própria à comunidade tribal, as Desmoiselles não pretendem ser senão expressão artística, numa sociedade em que a arte pretende afirmar-se como valor autônomo. Nesta autonomia reside talvez o traço mais específico da arte moderna e também o núcleo de contradições que a conduziram ao impasse atual. Talvez tenha cabimento ver em algumas manifestações da antiarte atual o apelo nostálgico a um tempo em que arte e vida social estavam integradas.