“Os altares tornaram-se vazios e, em vez de religiosa e penitente, tornou-se minha pintura, existencial e acusadora” (1968). Em pleno regime militar no Brasil, o pintor Samson Flexor assistia, mais uma vez, ao horror da violência, da falta de liberdade. Como nos tempos da Resistência Francesa, era preciso voltar à luta. E ele lutou até a morte.
Na década de 20, o Modernismo era formalista. Mais tarde, nos anos 30 e 40, o rigor cedeu espaço à busca das razões para existir. Paralelamente, seguiam as saídas já então consideradas convencionais, como o Expressionismo e o Cubismo. A arte sempre teve sua essência comprometida com a vida. Questões políticas, por exemplo, nunca deixaram de influenciar artistas e suas obras ao longo da história do mundo. A técnica e o conteúdo definem a qualidade de cada trabalho. Porém, a coragem de experimentar foi, e ainda é, determinante para a descoberta de novos limites em algo sem limites: o ato emocionado de criar. Foi assim que, entre outros movimentos, surgiram o Surrealismo e o Abstracionismo.
Na Europa, que exerceu inegável influência na arte internacional, a incessante busca de novos caminhos sempre determinou um “pós” algo, enquanto muitas vezes no resto do mundo ainda se procuravam modelos estéticos, convencionais. A fase abstrata do pintor russo Kandinsky, iniciada por volta de 1910/1911, quando declarou que “o problema da forma está ultrapassado” e escreveu o livro “Sobre o Espiritual na Arte”, estabeleceu a dicotomia entre temática clara e oculta.
A coragem para vencer e superar tragédias também mudou a vida e a obra do artista plástico Samson Flexor, nascido em 1907, na antiga Bessarábia (parte do Império Russo, depois Romênia), hoje República Moldova. Flexor estudou belas-artes nas principais escolas de importantes universidades da Bélgica e França. Com 23 anos, artista em ascensão, contrai grave enfermidade. Dois anos depois, aposenta-se por doença. Aos 26, sofre com a morte da primeira esposa e do primeiro filho. Judeu, converte-se ao catolicismo. Em 1940, transforma seu ateliê em uma oficina gráfica da Resistência à ocupação nazista na França.
Abstração brasileira
As guerras obrigam o homem a descobrir de novo o universo que julgava conhecer”, reflete Flexor. Em 1946, o artista vem ao Brasil com o grupo “Pintores Independentes de Paris”. Na seqüência de sua visita, a Galeria Prestes Maia, em São Paulo, promove mostra individual de seus trabalhos. Sérgio Milliet escreve no jornal O Estado de S. Paulo: “Flexor vem de um naturalismo forte, honesto e sem trucagens e chega a um abstracionismo quase puro, musical”. Talvez o exigente crítico à época nem soubesse, mas Flexor era exímio pianista. A paixão pelas imagens, cores e sons brasileiros foi radical. Dois anos depois (1948), muda-se para o Brasil, fixando-se em São Paulo.
Como forma de sobreviver (e até cumprindo promessas religiosas), o artista pinta trabalhos para igrejas paulistas e cariocas. Entre esses, destacam-se: “Os Passos da Paixão” (via sacra), na Igreja de Nossa Senhora de Fátima, e os afrescos da Igreja de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro (“neles, estão um pedaço da minha alma”), em São Paulo; e os vitrais da Igreja de Santa Cruz de Copacabana, no Rio de Janeiro. Também cria vitrais para residências (Família Hollnagel) e murais para clubes (Athlético Paulistano) e hospitais (São Luiz Gonzaga).
Samson Flexor, além de pintor, foi um dedicado professor. Com qualitativa formação acadêmica e a prática comprometida com a procura da excelência, formou gerações de novos artistas no seu “Atelier Abstração”, em São Paulo. Seus alunos/discípulos ouviram não frases de efeito, mas responsáveis reflexões do mestre: “Um quadro abstrato não representa, se apresenta”. Pura sabedoria. A simples emoção de quem consegue olhar além do aparente. Sua arte apresentou cuidados com a forma, o estilo e, principalmente, a linguagem. Sua pintura, embora abstrata, sempre concedeu altiva licença às figuras, mesmo que em discretas, suaves presenças. Distraídas lembranças que insistiam em pontuar sua mente. Traços, tons, iluminações que escondem/mostram almas.
Arte e liberdade
Para nós, artistas, liberdade é o direito que nos dão de escolher nossa própria prisão”, filosofou com sabedoria Flexor ao falar da disciplina na arte. Entretanto, por outro lado, ele também vivera o horror da guerra, participando ativamente da luta contra o nazismo. Ao chegar ao Brasil, acompanhou a redemocratização do País, com o fim do Estado Novo e a Ditadura Vargas. Entretanto, no final de sua vida, estava muito abatido pela volta e recrudescimento da repressão com a ditadura militar, nascida no golpe de 1964.
São magistrais as suas pinturas da série “Bípedes” (1967/68), uma síntese do figurativo e abstrato harmoniosos na mesma tela, deixando as formas e as cores falarem, ou melhor, gritarem às nossas consciências, num reflexo dos imensos monstros que nos tornamos muitas vezes. Um pouco antes de morrer, a pintura do artista também foi apagando, mas, ironicamente, iluminando. A série de aquarelas — ele não conseguia ter forças para pintar — chamada de “Transparências” (1970), é o desmembramento dos grandes e fortes “Bípedes” em partes, órgãos soltos. Algo como se a doença que vitimava o artista também estivesse nas obras, deixando apenas espectros brancos. Samson Flexor morreu, em São Paulo, no dia 31 de julho de 1971, aos 63 anos, vítima de edema pulmonar.