Em salas contíguas do Centro Cultural do Banco do Brasil, no Rio, estão expostas as obras do catalão Antoni Tàpies e do mineiro-carioca Farnese de Andrade. Ver, numa mesma visita, as duas exposições, foi para mim uma experiência particularmente estimulante porque me levou a estabelecer entre os dois artistas relações que, noutras circunstâncias, eu jamais teria estabelecido. De fato, o artista espanhol é sobretudo um pintor e as obras suas ali expostas são preponderantemente pinturas, gravuras e desenhos, enquanto as do brasileiro – que foi também desenhista – são assemblages construídas com os mais diversos elementos, desde bonecos e ex-votos até gamelas e oratórios. Dois caminhos totalmente diferentes, mas – e aqui o vínculo entre eles – respondendo a uma mesma questão: como fazer arte sem se valer das técnicas artísticas usuais, nem da que se funda na figura pintada nem da que se apóia na construção intelectual abstrata? Não sei se Farnese se colocou claramente esta questão; Tàpies seguramente sim, e por isso mesmo deu a resposta que deu. De qualquer modo, Farnese opta por um tipo de expressão que dispensa toda sabedoria pictórica que assimilara e lança mão de formas do cotidiano por isso mesmo já impregnadas de sentido, para com elas inventar um mundo de evocação e fantasia. Esta é uma escolha exatamente contrária à que fez Antoni Tàpies.
O artista catalão optou pela exclusão da fantasia, do imaginário, e o mais curioso é que, antes de fazer esta opção, a sua pintura era extraordinariamente rica de imaginação e fantasia surreal, como se vê pelo único quadro dessa fase, exposto ali no CCBB. Esse quadro nos mostra um pintor capaz de inventar um mundo de imagens oníricas, criadas por exímio desenhista e um colorista fascinante. Se se atenta para esta fase de Tàpies, sua obra posterior – sejam os desenhos, as gravuras e os quadros de grande formato – surge como uma espécie de descida ao rés de pintura, a uma linguagem rude, rasa, de garatujas, sinais, manchas e pasta, sem abertura a qualquer transcendência.
Vi os trabalhos de Tàpies antes de ver os de Farnese, mas, já nesta primeira vista, percebi – sobretudo diante das grandes telas – que o pintor espanhol trava ali uma luta para incutir significação a um fazer que é mero gesto a partir de nada. Para chegar aonde? Sem dúvida, uma pintura que se nega a representar a realidade em qualquer nível e, por isso, limita-se a ser uma linguagem de sinais. Sinais sem significado a priori, que não se constituem em sistema semântico e que buscam captar, na sua ausência de significado, o Significado. E, assim, cada quadro é o esboço de uma linguagem que ainda não existe e cujo sentido reside na nossa necessidade de lhe atribuir significação. É uma pintura sem espiritualidade (no sentido laico), sem relação com a personalidade consciente do pintor nem com sua história pessoal, passada ou presente. Como a expressão do corpo que nada sabe de si. Porque assim é essa escrita feita garatujas e manchas, que não se constitui em discurso, que não se refere à realidade exterior a ela: vestígios da gesticulação do corpo-corpo. Isto nos quadros posteriores aos anos 70, porque os da fase anterior (corda presa na tela, toalha pendente de um suporte) são apenas a expressão de uma espécie de desprezo dos valores estéticos, espécie de não-arte – que usa a tela para não pintar, para negá-la – como a dizer: “tudo é expressão e basta”. Só que não basta, mesmo quando se escolhe, para demonstrar seu desprezo à “arte burguesa”, tudo aquilo que, por definição, expressa apenas banalidade. Nos dois quadros mais recentes, Tàpies parece tentar reconstruir a linguagem figurativa, ainda que sem qualquer concessão ao “artístico”.
Farnese, ao contrário, se vale do universo cultural – e freqüentemente religioso, de religiosidade erotizada – para expressar-se. Lança mão de coisas do cotidiano – como armários, caixas, oratórios, gamelas – violenta-lhes a função habitual e, com isso, provoca um curto-circuito, um espanto que nos arrasta ao seu mundo mágico, habitado por bonecas mutiladas, descascadas que, ainda assim, nos espiam com seus olhos azuis, do fundo da perdida infância ou da morte.
São duas atitudes em face da arte e ambas voltadas para reinventá-la, já que, aparentemente, no entender dos dois artistas, o caminho que ela percorreu se esgotara. Tàpies assumiu uma visão crítica, desmistificadora do mundo imaginário (“irreal”) e reduziu a linguagem pictórica aos seus elementos últimos (ou primeiros), isto é, ao rastro do pincel movido pelo gesto aleatório da mão. Não há na pintura de Tàpies nenhuma concessão à fantasia, devotado que está à materialidade da pintura: basta-lhe a expressão imanente a toda e qualquer forma e que não expressa senão a si mesma. Já a opção de Farnese, que também evita o “imaginário pintado”, é outra: ele o substitui pelo imaginário dos objetos e figuras, com a intenção de dessacralizá-los e dar vazão a seus mais secretos desejos, expressos com a irreverência dos dadaístas e surrealistas.