Fonte: Revista Continente Multicultural

 

Cada dia que passa torna-se mais inaceitável o cenário atual das artes plásticas, em que uma pseudo-vanguarda, na verdade acadêmica e pobre de criatividade, continua a gozar do apoio das instituições culturais, tanto privadas como oficiais, inibindo-se assim quase todas as manifestações que não se enquadrem no rótulo de “arte contemporânea”. A propósito desse tipo de hegemonia espúria, cito o exemplo de uma pintora que já trabalha e expõe há mais 30 anos, mas que hoje não consegue onde mostrar seus trabalhos. Ocorreu que, tendo sabido que o Museu da República ia franquear sua sala de exposições a artistas que se candidatassem a expor ali, foi até lá informar-se. A primeira pergunta que ouviu foi: “a senhora faz arte contemporânea?” E ela: “faço, sou uma pintora que busca expressar nossa cultura e nossa vida atual”. Resposta: “Lamento, mas aqui só vamos expor arte contemporânea”. Ou seja, instalações ou coisa que o valha. Não houve qualquer interesse em ver o trabalho da pintora, em avaliar a sua qualidade. O simples fato de ser pintura era suficiente para descartá-la.

 Mas o que significa isto? Examinemos. Se, pelo contrário, se tratasse de “arte contemporânea”, já estaria aberta a possibilidade de ser aceita. Ou seja, a atitude do responsável por aquela sala de exposições é a de pura e simples adequação ao que está estabelecido como “arte de hoje”, arte aceita e aprovada. Parece piada: depois de um século de irreverência, durante o qual os artistas romperam com todas as normas estabelecidas, em nome do novo, rejeitando o que o Estado e o burguesia aceitavam como arte, hoje, uma expressão sem qualquer valor estético tornou-se a arte oficial, acolhida e financiada tanto pelo Estado como pelos bancos e empresas capitalistas.

 Em face disto, torna-se obrigatório concluir que ou os burgueses de hoje são suicidas e decidiram apoiar a arte revolucionária que visa destruí-los ou essa tal “arte contemporânea”, que se considera herdeira das vanguardas inconformistas do passado, é cobra sem veneno, não ameaça a ninguém, e até mesmo serve para que empresa e Estado se mostrem modernos e “contemporâneos”.

 Um dos mais importantes espaço culturais do Rio – e dos mais flexíveis – expõe atualmente várias mostras constituídas na maioria de instalações; a maior dessas mostras, que ocupa várias salas, é de um artista que comemora 25 anos de atividade, mas que muito pouco conhecido, fora da turma especializada. Ele nos mostra, nessas várias salas, coisas destituídas de qualquer interesse e real criatividade. E ali tem de tudo: desenhos, fotografias, objetos, que sempre nos lembra outro artista. Em nenhum momento, o visitante é tocado por uma fagulha de emoção ou descoberta. Nada. São muitos metros quadrados de dèja-vu. Uma das salas foi reservada ao que, certamente, o autor reputa a grande obra da mostra: uma instalação que consiste num muro sobre o qual repousa a ponta de uma viga de aço de uns dez metros de comprimento. O que significa aquilo? Talvez houvesse ao lado um texto explicando as maravilhosas ilações que o autor – e somente ele – deve tirar de tão extemporâneo aparato. Mas, a “obra” mesma, o objeto material que temos diante dos olhos, não nos fala, não nos desperta qualquer interesse.

Fica-nos, porém, a pergunta: o que leva um artista, possivelmente talentoso, a realizar tal coisa, que implica em muito trabalho, em muito dispêndio de tempo e dinheiro? Não acredito que o autor da obra tenha a intenção deliberada de enganar as pessoas.Trata-se, na verdade, de um equívoco em que mergulhou boa parte dos artistas das últimas gerações.

A ruptura com a arte do passado se consumou de fato no Dadaísmo, particularmente em manifestações mais radicais como as de Duchamp e os merzbaus de Kurt Schwitters. Já nos anos 20, o vanguardista Picasso dizia aos outros vanguardistas que era impossível conceber a atividade artística como uma espécie de vale-tudo. Mas era tarde demais e assim chegamos às manifestações extremadas de “liberdade artística”, como a do sujeito que pôs cocô numa lata, assinou-a e a mandou para uma exposição.

 Gostaria de citar aqui o que declarou, em entrevista recente à Folha de São Paulo, a ensaísta norte-americana Camille Paglia, internacionalmente conhecida por combater as idéias conservadoras e convencionais no campo da cultura e da vida social. A respeito da arte de hoje, disse: “Tanta gente se dedica aos ‘processos’, aos ‘esboços’, às ‘notações’. É uma atitude egocêntrica, mas que foi perfeitamente aceitável num determinado momento. ‘Não quero fazer obra-prima nenhuma’, proclamam. Tudo bem. Minha vontade agora é dizer: Acordem! Estamos no século 21 e as artes estão perdendo o seu lugar. Vocês têm que brigar pela arte. O jeito de brigar é fazer coisas que durem, querer fazer coisas que durem. E que falem a todo mundo. Precisamos repensar as coisas, começando por descartar o receituário pretensioso da vanguarda. Pelo menos nos EUA, onde ainda é possível um artista como Damien Hirst exibir pedaços de vaca num museu. Teria sido muito interessante há 70 anos. Hoje não faz sentido, é adolescente. Acordem! Vocês estão pelo menos 40 anos atrasados. Já é hora de redescobrir a beleza, o prazer, coisas que têm que voltar ao centro da arte, se quer falar de novo ao público não especial”.