Fonte: Luís Augusto Fischer

 semana de arte moderna 3e8ff

Peça ao brasileiro (é bom brincar de generalizar, como ensinava, na prática, Nelson Rodrigues) para identificar, no rol das coisas construídas no Brasil, três que sejam antigas, velhíssimas, quaisquer três. Coisas velhas que lembrem o tempo mais remoto possível desta jovem terra brasileira. O que dirá o brasileiro? Que itens entrarão em sua imaginária lista? Em primeiro lugar virá ou o Largo do Pelourinho, em Salvador, Bahia, ou a cidade de Ouro Preto, em Minas Gerais. A variação será mínima: estátuas do Aleijadinho, ou São Luís, no Maranhão, ou uma igreja em São João del Rey, ou um mosteiro no Rio de Janeiro. Mas é certo que a velhice da cultura brasileira não recua daí, desses prédios e ruas nascidos há não mais que três séculos.

 Isso dá notícia de nossa juventude – tão longe estamos da velhice de Damasco, de Cádiz ou Londres – e, no mesmo passo, aumenta o espanto do número do aniversário da cidade de São Paulo: 450 anos de vida. (Nenhum brasileiro, vivo ou morto, incluiria qualquer prédio ou praça de São Paulo entre as coisas mais velhas do Brasil.) Naturalmente, os mais rigorosos relativizarão a contagem, observando que cidade mesmo, onde hoje vivem os paulistanos, é coisa bem mais recente. Na altura de 1850, a população teria uns 15 mil habitantes, a mesma de Belém, Porto Alegre ou da velha Ouro Preto; em 1880, chegaria a 45 mil – nos dois casos, era gente que viria a caber, com folga, em um Morumbi. Foi só na virada do século que a coisa mudou mesmo: em 1890, 65 mil (sempre em números arredondados); em 1900, 240 mil, num aumento de quatro vezes; 1910, 370 mil; 1920, 580 mil; 1930, 880 mil; e em 1940, 1,325 milhão. Então, num prazo de 50 anos, em apenas duas gerações e num período alcançável na vida de qualquer um de nós, a população aumentou 20 vezes.

 Não tem mensuração razoável para o aumento escondido atrás da inocente insinuação “20 vezes”. Está mais próximo da metástase do que do crescimento, e faz lembrar uma passagem dos Diálogos de Platão, em que o discípulo pergunta ao mestre até que ponto uma cidade pode crescer, e este responde que só até o ponto em que o nome da cidade ainda seja significativo para designar o conjunto. Indo dos 65 mil para os 1,325 milhão, tudo continuou cabendo na denominação “São Paulo”? Caberá ainda, com os atuais milhões?

 Um nome pode ser uma condenação, uma sentença, e nesse caso haveria total conveniência entre a capital bandeirante e seu patrono. Paulo foi ideólogo e executor da expansão do Cristianismo; a região brasileira que leva seu nome foi a sede de pelo menos uma das maiores febres expansionistas do país, aquele que ignorou o Tratado de Tordesilhas e integrou o Sul, o Centro, o Oeste e parte do Norte com o litoral; e a cidade com o mesmo nome, agora aniversariante, é ainda o motor da economia e da política do Brasil de nosso tempo. (A flutuação do nome entre o Estado e sua capital é uma significativa indistinção entre todo e parte, entre continente e conteúdo, entre forma e fundo, talvez entre indivíduo e coletivo. Quando tudo tem o mesmo nome, nada faz diferença.)

 Tudo – crescimento abrupto, ponto de partida na conquista do território, mandato simbólico – parece empurrar a cidade de São Paulo para a ponta do processo, para o local em que as coisas encontram seu limite, onde se decidem as novidades e se conquista o desconhecido. A única eventual contradita a essa vocação seria, se fosse, a alegada idade, os tais 450 anos, que no entanto viraram pó ao longo do tempo. São Paulo, como Buenos Aires, pode posar para a foto com a plaquinha dos quatro séculos e meio, mas não pode esconder que é uma cidade de cem anos, nada mais. Mas, à diferença da capital argentina, a ex-terra da garoa não tem, nunca teve, qualquer compromisso com a melancolia e, pelo contrário, sua arte tem sido uma renovada acolhida do novo. Vanguarda é o nome disso.

 Vanguarda foi aquele grupo de adolescentes que fizeram a poesia ultra-romântica na acanhadíssima São Paulo de meados do século 19. Mais vanguarda foi o grupo modernista, agrupação desigual que no entanto ostenta uma clara disposição de saudar a novidade, às vezes incorporando as coisas do Passado e do Interior, como se lê no esforço construtivo de Mário de Andrade. Vanguarda foi também a elite que inventou e pôs de pé a Universidade de São Paulo, para praticar a ciência moderna sobre a natureza e a sociedade. As artes visuais do país parecem respirar os mais agudos ares novidadeiros também em São Paulo, desde cem anos atrás (o que talvez se explique por motivo mais trivial e direto: desde que as vanguardas da pintura e assemelhados foram engolidas pelo Alto Mercado, elas se sentem à vontade apenas e sempre ali onde há dinheiro grosso). Assim também a Tropicália, o Concretismo e também o rock, o pop e assemelhados, dos Mutantes ao falecido Itamar Assumpção, ao Rumo e aos Titãs, chegando ao Karnak e ao rap.

 Mesmo um sujeito de temperamento clássico, quer dizer, não-romântico e portanto não-vanguardista, que é o professor Antonio Candido, figura referencial para este palpiteiro aqui, parece ter-se resignado alguma vez. Nas páginas finais de sua tese Os Parceiros do Rio Bonito, recentemente reeditada (editoras 34 e Duas Cidades), Candido discorre sobre o que lhe parecia ser – era o significativo ano de 54 quando da defesa do trabalho, junto à Sociologia da USP – o futuro do “homem rústico” do campo, que sobrevivia precariamente em sistema de parceria, com produção de subsistência e perspectiva zero de melhorar. “Pôde-se ver – diz Candido – que os elementos de que dispõe sua cultura tradicional são insuficientes para garantir-lhe a integração satisfatória à nova ordem de coisas, e que ela é algo a ser superado, se quisermos que ele se incorpore em boas condições à vida moderna.”

 “Nova ordem de coisas” quer dizer urbanização e novo surto industrial, produzindo aqui os automóveis e caminhões que fariam o novo Brasil, a força da grana que, como disse de São Paulo um artista notável, ergue e destrói coisas belas. Ordem que atropelou a antiga cultura rural nascida ali mesmo, que talvez pudesse render algum fruto se tivesse tempo de estabilizar suas formas. (Posta fora pela porta da frente, a cultura rural voltou pela janela, décadas depois, mas com o uniforme do Texas, nos rodeios.) Candido, socialista de coração, foi um pragmático no contexto: não derramou uma lágrima pelo fim daquele mundo, preferindo sugerir medidas políticas de integração do rude caipira à nova ordem. Se a comparação couber, é de lembrar a autocrítica de Euclides da Cunha, no prefácio a Os Sertões. Certo, era uma guerra declarada, com canhões e tropas a desbaratar uma comunidade de sonhadores, ao passo que a Nova Ordem apenas incorporava todos e apagava todo o passado.

 Vanguarda, a condenação da aniversariante. Salvo um Adoniran Barbosa em contrário, São Paulo até agora abriu mão da melancolia do passado. Talvez uma data como 450 anos faça alguma mudança. Saúde!