Há casos em que a preocupação com o efeito técnico deixa em plano secundário a expressão estética propriamente dita
Nesta série de artigos que tenho escrito aqui acerca de alguns problemas da arte contemporânea, observei que nem todos os movimentos de vanguarda apontavam para o futuro. Esta observação baseia-se no fato de que alguns desses movimentos foram decorrência da crise do artesanato e que, em vez de optar pela nova tecnologia, detiveram-se no questionamento das linguagens artesanais e assim mergulharam num impasse. Afirmei também que as tentativas de usar a nova tecnologia nem sempre deram bons resultados, de modo que, a meu ver, a fotografia e o cinema foram os únicos usos tecnológicos que produziram uma nova arte.
Essas idéias estavam presentes na minha mente quando visitei, esta semana, no Centro Cultural do Banco do Brasil, no Rio, a exposição Movimentos Improváveis – o efeito do cinema na arte contemporânea. Esta exposição reúne trabalhos de quatorze artistas nacionais e estrangeiros, que ali exibem instalações cinematográficas e fotográficas, vídeo-instalações e foto-instalações, enfim, uma série de experiências que combinam os recursos expressivos e técnicos dessas diferentes linguagens.
O curador da mostra, Philippe Dubois, em seu texto introdutório afirma que, “sem dúvida, o movimento é o único meio de relacionamento entre o homem e a realidade”, o que me parece um exagero, mesmo levando-se em conta que, com esta afirmação, ele pretendeu ressaltar a importância das experiências realizadas pelos expositores. Aliás, um traço característico dessa mostra é o excesso de pretensão, não apenas do curador, como de alguns dos expositores na formulação das idéias que suas obras supostamente expressariam, envolvendo as noções de movimento, tempo, duração, etc. Não resta dúvida de que tanto o cinema, como a fotografia e o vídeo, pelo fato mesmo de poderem captar a imagem dos objetos, tanto na sua imobilidade, como em seu movimento, possibilitam uma reflexão nova sobre aquelas noções, e a exploração dessas possibilidades está presente em muitos dos trabalhos expostos, sendo um dos mais interessantes deles Corpos impossíveis. Trata-se de uma instalação fotográfica e vídeo, de autoria de Thierry Kuntzel, que consiste numa série de retratos fotográficos de um mesmo garoto, em close e em grande formato, cada um deles numa pose determinada; o último dos retratos é na verdade um vídeo que muda incessantemente e, ao mudar, repete a pose de cada um dos demais retratos ali expostos. Esta instalação, no meu entender, consegue superar um problema comum às obras que incorporam o movimento real: a repetição do mesmo movimento que conduz a saturar o espectador. Neste caso, a repetição é atenuada – e mesmo sublimada – por envolver imobilidade e mobilidade num mesmo desenrolar em que um absorve e “decifra” o outro.
Já não é o que acontece, por exemplo, com a obra Et pourtant il tourne, em que o movimento se faz de maneira frenética e repetitiva, com o propósito de causar impacto – e o consegue – mas que logo se anula pela repetição incessante. A realização deste trabalho teria envolvido um grande número de câmaras fotográficas, visando obter resultados jamais conseguidos nesse terreno. O vídeo mostra um casal desnudo dançando em meio a uma mancha de água imobilizada. Sabe-se que o autor fez jogar a água de um balde sobre os dançarinos no momento em que cinqüenta câmaras disparavam, obtendo por um meio que desconheço, este resultado realmente surpreendente: o casal está em movimento, mas a água está parada. Apesar disto e da forte expressividade das figuras nuas, o impacto obtido logo é anulado pelo movimento repetitivo. Este é certamente mais um caso, neste tipo de linguagem, em que a preocupação com o efeito técnico deixa em plano secundário a expressão estética propriamente dita.
Mas não é uma exceção, nesta mostra, caracterizada sobretudo pela busca de efeitos inusitados, quase como truques. Este é o caso do vídeo-instalação do brasileiro Ronaldo Kiel, intitulada Quem semeia vento colhe tempestade e que consiste nas imagens de roupas na corda, batidas pelo vento: a zoada de um ventilador ligado atrás do painel contribui para criar a ilusão de que há um vento real agitando aquelas peças de roupa.
Impacto visual maior nos causou o trabalho de Ange Leccia, chamado Mar, constituído de uma ampla tela onde se projeta a imagem de grandes ondas subindo e descendo; a ausência do marulho, que na vida real acompanha a agitação das ondas, acentua a expressividade da imagem em movimento.
Menos impacto provoca a obra Humanidade impensável, de Karl-Harmut Lerch e Klaus Holtz, que consiste no close de um rosto feminino e que tem como subtítulo 36976 retratos, dando a entender que o incessante formigar da imagem, em rapidíssima mutação, é o resultado da sucessão de imagens do mesmo rosto fotografado milhares de vezes com mínimas mudanças de ângulo. Se é muito interessante saber-se disto, o resultado efetivo na relação obra-espectador não alcança a pretensão dos autores.
Mais interesse desperta a instalação cinematográfica O quarto para dormir em pé, de Wyn Geleynse: compõe-se de uma reprodução, em grande formato, da fotografia de um quarto, com uma cômoda à esquerda, uma mesa de toilette com espelho na parede fronteira e, no ângulo inferior esquerdo, uma cama, de que só se percebe uma parte. No espelho, que teoricamente refletiria a cama, vê-se a figura de uma pessoa que às vezes se move e que estaria na parte da cama fora de visão. Talvez seja este um dos trabalhos mais interessantes da mostra, pelo uso sutil que faz dos meios técnicos, combinado com certo senso de humor.
A exposição compreende ainda alguns outros trabalhos mas, a meu ver, de menor interesse, ainda que caprichosamente concebidos. Outro problema deste tipo de mostra é a presença incômoda dos equipamentos indispensáveis para a projeção das imagens nas telas, os quais nem sempre são tão silenciosos quanto deveriam ser.
Para concluir, digo-lhes que saí dali para um cinema onde assisti a um filme brasileiro, que conta uma história passada no Brasil do século XVI. Foi inevitável a comparação, quando me vi envolvido por uma atmosfera de intensa dramaticidade, de que participava a paisagem misteriosa da floresta. Ali, no filme, a imagem fotográfica, tornada ação dramática e evocação poética, cria uma realidade imaginária, em face da qual, as instalações que eu acabara de ver são um mero balbucio. É como se voltássemos a um estágio anterior à invenção do cinema.