O mais belo retábulo do Brasil
Retábulo – para quem não sabe – é uma construção de madeira ou pedra, em forma de painel e com lavores, que se coloca na parte posterior dos altares, sendo geralmente decorada com temas de história sagrada ou imagens. Os retábulos podem ser classificados de acordo com o estilo de cada época. O grande historiador da arte luso-brasileira Robert Chester Smith classificou os retábulos das primeiras igrejas construídas no Brasil como de “estilo nacional português”: estilo correspondente à primeira fase do barroco (até cerca de 1730). Em sua segunda fase (cerca de 1730 a 1760) o barroco dos retábulos é conhecido como estilo Dom João V e apresenta, entre outras características, um coroamento ou remate em dossel e a substituição de ornatos fitomórficos e zoomórficos por anjos e santos. A terceira fase dos retábulos (iniciada, mais ou menos, em 1760) é em estilo rococó, que surgiu na França durante o reinado de Luís XV e se caracteriza pelo excesso de ornatos em forma de conchas e guirlandas (flores e folhagens), curvas caprichosas e formas assimétricas. A partir do século 19 apareceram os retábulos em estilo neoclássico, predominantes em templos modernos.
O retábulo da capela-mor da basílica de São Bento de Olinda é tipicamente rococó. Foi executado, com a construção da nova capela, de 1780 a 1786, quando era abade Frei Miguel Arcanjo da Anunciação.
Natural de São Paulo, esse grande abade escreveu a Crônica do Mosteiro de São Bento de Olinda até 1763 e foi incluído por José Antonio Gonsalves de Mello “entre os grandes nomes da historiografia brasileira do século 18”. Como o retábulo olindense é muito semelhante ao da capela-mor da abadia portuguesa de Tibães, perto de Braga, é muito provável que seu projeto seja de autoria do beneditino português Frei José de Santo Antonio Ferreira Vilaça, o arquiteto de Tibães biografado por Robert Smith em livro publicado pela Fundação Calouste Gulbenkian em 1972. Mas quem o executou, introduzindo-lhe o que Germain Bazin chamou “alguns prenúncios de neoclassicismo”, foi o entalhador pernambucano José Gomes de Figueiredo, também estudado pelo incansável e competente Robert Smith em artigo publicado pela revista inglesa The Connoiseur de abril do mesmo ano (páginas 248-256).
O retábulo olindense, portanto, foi concebido em Portugal, mas em sua execução o entalhador incluiu “elementos de ornato calçados na arte de Pernambuco”, como escreveu Germain Bazin, acrescentando: “A beleza do retábulo de São Bento talvez esteja no fato de que o espírito arquitetônico, precursor do neoclassicismo, traz à impetuosidade da rocalha um momento de equilíbrio” (cf. A Arquitetura Religiosa Barroca no Brasil, Editora Record, 1983 – a edição francesa é de 1956 – v. 1, p. 319). Isto quer dizer que o retábulo da capela-mor da basílica de São Bento de Olinda tem, além de sua beleza e monumentalidade, a importância de ser, na história da arte, um exemplo de disciplina neoclássica aplicada à impetuosidade rococó.
Está explicado porque tão expressiva peça foi escolhida para representar a arquitetura religiosa brasileira na grande exposição que os museus Guggenheim – o de Nova York e o de Bilbao – vão realizar brevemente: “Brazil: Body and Soul”. Imagino que o corpo seja o território nacional com suas belezas naturais e arquitetônicas; e a alma, a fé do nosso povo, representada pelo retábulo olindense. Que maravilha! A escolha foi feita pelo banqueiro santista Edemar Cid Ferreira, um homem que mostra não ser tão difícil para um rico entrar no reino dos céus, como foi dito por Jesus Cristo a um que não queria ajudar os pobres. Esse insigne cidadão brasileiro vem sendo criticado por pesquisadores mineiros e baianos por haver preferido o retábulo olindense. Trata-se de uma discriminação injustificável porque preconceitos regionais não devem interferir na apreciação estética. A arte religiosa brasileira é tanto mais bela quanto variada em suas expressões ecológicas. Exemplares do barroco mineiro e baiano também certamente aparecerão em Nova York e Bilbao.
Inadmissíveis e até ridículos, em história da arte, são os exclusivismos regionais.
Acabo de ver o imenso retábulo olindense desmontado e submetido a uma recuperação cientificamente orientada por uma equipe da Fundação Joaquim Nabuco, sob a direção da Sra. Pérside Omena. Espalhadas pelo claustro e sacristia, as grandes e pesadas peças que o compõem parecem doentes numa unidade de terapia intensiva. Não faltam sequer os tubos suspensos com K-OTEC diluído em aguarrás mineral injetada nas madeiras. Nas galerias abertas pelos térmites está sendo enxertada a resina Paraloide B 72 com microesfera de vidro. Nenhuma das peças do retábulo – do embasamento (soco, cripta, peanha da imagem de São Bento) –, da base de sustentação (predela, renda da tribuna) –, do pé direito (consoles, colunas, nichos das imagens de São Gregório Magno e Santa Escolástica, sanefas, fustes, pilastras, arremates) –, do entablamento (arquitrave, frisos, cornijas) – e do coroamento (frontão de cartela, volutas, dossel) – escapou à fúria dos cupins. Antes do desmonte, o retábulo foi detalhadamente fotografado e esquematizado com o registro alfa-numérico de cada peça. Uma das preocupações dos restauradores foi a de preservar o douramento original, reintegrando-se o novo apenas nas lacunas ou áreas de perda. Um trabalho que honra a museologia brasileira, feito sob a supervisão do nosso nunca suficientemente louvado Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN).
Depois de recuperadas, as peças serão devidamente acondicionadas por técnicos do próprio Museu Guggenheim e embarcadas para a grande viagem Recife-Nova York, tudo sob a garantia de uma companhia seguradora de reputação internacional. Pode-se imaginar o impacto que vai causar o retábulo olindense no audaciosamente moderno edifício do Guggenheim, projetado pelo genial Frank Lloyd Wright, em plena Quinta Avenida. Imagino-o montado no imenso saguão que tem o pé direito equivalente aos cinco andares do edifício. Depois de seis meses em Nova York, será novamente desmontado e viajará para ser exposto no mais audacioso e belo edifício da arquitetura contemporânea, que é o Guggenheim de Bilbao. A volta do retábulo a Olinda está prevista para setembro ou outubro do próximo ano.
Ao ser nomeado abade do Mosteiro de São Bento de Olinda, em 1961, Dom Basílio Penido foi visitar, no IPHAN, seu insigne fundador e diretor, Rodrigo Mello Franco de Andrade, que lhe disse o seguinte: “A capela-mor de seu mosteiro possui o mais belo retábulo do Brasil”. Apenas repetia o julgamento de Robert Chester Smith, Germain Bazin e outros estudiosos da arte sacra brasileira. Depois de Smith e Bazin esteve no Brasil o grande crítico de arte inglês Secheverell Sitwell, homem fino, especialista no barroco meridional e irmão da grande poetisa Edith Sitwell e do memorialista Osbert Sitwell. Secheverell achou o Recife “more to my taste than any other town in Brazil”. Ele foi do Recife a Olinda numa tarde radiosa que lhe deu a impressão de estar numa cidade do Mediterrâneo. Havia missa vespertina na igreja de São Bento. A luz crepuscular penetrava pelas lunetas da capela-mor, dando tons violetas ao grande retábulo. O inglês discreto não se conteve e escreveu em seu livro Southern Baroque Revisited, publicado em Londres (Weinfeld & Nicholson, 1967): “It was there, had one the choice, that one would wish to live in Brazil” (cito a edição norte-americana do mesmo ano – New York: G.P. Putnam’s Sons – que se intitula Baroque and Rococó, páginas 221-222).
Coube ao atual abade, Dom Beda Pereira de Holanda, a histórica resolução de, ouvida a comunidade, permitir o empréstimo do retábulo aos museus Guggenheim: empréstimo idealizado e financiado pelo mecenas Edemar Cid Ferreira e condicionado a uma restauração para a qual nem o mosteiro nem o IPHAN dispunham de recursos suficientes. A gigantesca e bem orientada operação de desmonte veio a calhar, porque os terríveis cupins estavam fazendo com que o tão justamente louvado retábulo não tardasse em ruir. Conta Dom Beda que olhava para os já visíveis estragos dos cupins no retábulo pedindo ao bom Deus que encontrasse uma solução. Esta chegou através da Fundação Solomon R. Guggenheim. Como escreve São João em seu Evangelho, “a salvação vem dos judeus” (João 4, 22).