Fonte: Revista Continente Multicultural

 

Se se considera que a característica essencial do dadaísmo é a atitude anti-arte, Duchamp será o dadaísta por excelência. De fato, por volta de 1915, quando abandona a pintura, assume uma atitude de rompimento com o conceito de arte, considera que o gosto estético é fruto de mero hábito e busca outros modos de expressão. O ready-made é um deles; o outro – de que é exemplo o Grande Vidro – procura construir a obra (ou a “coisa”, como ele dizia) a partir de procedimentos científicos, como cálculos matemáticos, evitando assim que ela se tornasse produto do gosto. O ready-made é uma manifestação ainda mais radical da sua intenção de romper com o fazer artístico, uma vez que se trata de apropriar-se do que já está feito: a escolha de produtos industriais, realizados com finalidade prática e não artística (urinol de louça, pá, roda de bicicleta), elevados à categoria de obras de arte.

Nestes casos, está implícito também o propósito de chocar o espectador (o artista, o crítico, o amador de arte). Não por acaso, Duchamp afirmaria mais tarde que “será arte tudo o que eu disser que é arte” – ou seja, todo o acervo artístico que nos foi legado pelo passado só é considerado arte porque alguém assim o disse e nós nos habituamos a admiti-lo. Donde se conclui que A Gioconda, de Da Vinci, ou O enterro do Conde de Orgaz, de El Greco, não seriam mais arte do que um urinol ou uma pá de lixo. Esta tese se explicita quando Duchamp acrescenta uma barbicha e um bigode àquela obra-prima de Da Vinci.

 Tais atitudes e afirmações radicais de Duchamp – que o celebrizaram e o tornaram exemplo para muitos artistas de vanguarda do mundo inteiro – têm ocultado algumas questões mais complexas envolvidas na sua postura em face das questões artísticas. Tomemos como exemplo o célebre Grande Vidro, no qual trabalhou de 1915 a 1923, deixando inacabado. Quando um jornalista perguntou-lhe em que acreditava naquela época, respondeu: “Em nada”, mas corrigiu: “Não, acreditava no meu Vidro”. Sim, porque ninguém trabalha durante tanto tempo numa obra de complexa e apurada realização, sem acreditar nela. Neste sentido, o Grande Vidro é o contrário do ready-made: não era produto de mera nomeação, mas do trabalho exigente e acurado. Seria aquilo uma obra de arte? Se não, seria o quê? Não é outra coisa senão ser expressão. O que é arte senão o trabalho levado ao máximo de apuro e exigência? Nas palavras do próprio Duchamp, ele tentou ali criar uma obra que não fosse fruto do gosto estético, mas de cálculos; e que não era para ser fruída como uma pintura, mas para ser entendida nas relações simbólicas de seus elementos: a Noiva, os Nove Moldes Machos, o Moedor de Chocolate, os Tubos Capilares etc. etc. no total de 49 elementos. Noutras palavras, Duchamp tenta, no Grande Vidro, inventar um novo modo de expressão... estética. No entanto, não conclui a obra. Por quê? Responde: “Perdi o interesse. Já não me encontrava mais ali. Aquela monotonia...”.

 Talvez esteja aí uma chave para entender Duchamp. Abandonara a pintura de cavalete porque ela se tornara um hábito, abandonou o Grande Vidro, quando se habituara a ele, deixara de ser experiência nova, criadora, viva. Para Duchamp ser artista não era simplesmente produzir pinturas ou esculturas pelo uso de uma técnica dominada, uma maestria, e, sim, revelar o novo, o inesperado, o inabitual. Por isso, em vez da tela, um painel de vidro; em vez de tintas, matérias pictóricas; usa fios de chumbo e outros recursos tecnológicos. Mas a experiência do Grande Vidro fracassa, o vidro se trinca, o entusiasmo murcha. A partir daí, ele não se propõe nenhuma grande obra, a não ser, nos últimos 24 anos de vida, o Étant donné, só conhecida após sua morte em 1968. Durante décadas, entrega-se ao fortuito, ao jogo de xadrez e “não faz” alguns poucos ready-mades.

Esta absolutização da busca do novo, que rejeita as linguagens artísticas existentes por considerar que usá-las por si só já comprometeria a novidade do novo, teria de conduzir inevitavelmente à negação da arte, entendida como reelaboração da linguagem estética. Considerá-las como mortas ou esgotadas, foi uma atitude arrogante que não correspondia à realidade, uma vez que eram contemporâneos de Duchamp artistas inovadores e de alta qualidade como Chagall, Schwitters, Morandi, Mondrian, sem falar em Picasso, Brancusi, Braque e Léger, além de artistas posteriores que continuam a produzir pintura, escultura e gravura de nível artístico indiscutível.

 Deve-se, portanto, entender Duchamp como uma personalidade muito especial, de que não se pode excluir certo ar blasé e o propósito de chocar e desafiar os valores estabelecidos. Por isso mesmo, apesar de sua inegável inteligência e sincera aversão à arte academizada e acomodada, a atitude anti-arte e o exemplo que deu geraram, talvez por um mal-entendido, uma “arte” da facilidade e do improviso inconseqüente, a que faltam exatamente exigência e rigor ético. Contraditoriamente, a rebeldia de Duchamp tornar-se-ia arte oficial, aceita e financiada por fundações e museus. A própria obra de Duchamp terminou no Museu de Arte da Filadélfia.