Se há, dentre os movimentos de vanguarda do começo do século 20, um que expressou a reação do indivíduo em face da sociedade moderna, já então marcada pelos primeiros sinais da massificação, este movimento foi o Expressionismo, de que a mais legítima expressão, no Brasil, foi Oswaldo Goeldi.
Escrevo, agora, sobre esse mestre da gravura, a propósito do livro Oswaldo Goeldi na Coleção Hermann Kümmerly, recentemente lançado no Rio de Janeiro. O livro contém a reprodução de 150 desenhos e gravuras doados pelo artista, em 1930, a seu amigo de juventude Hermann Kürmerley, trabalhos esses que nos revelam os primeiros passos daquele que se tornaria o fundador da moderna gravura brasileira e o autor de uma obra gráfica que o situa entre os mais importantes gravadores contemporâneos. Uma parte das obras de Goeldi jovem pertence hoje a Raul Schmidt Phillipe, responsável pela publicação da mencionada obra. Devo assinalar a qualidade desses trabalhos de juventude que, sem plenitude da fase madura, já trazem a força expressiva do futuro mestre.
Conheci Oswaldo Goeldi nos anos 50, logo depois que me mudei para o Rio de Janeiro. Àquela altura, a gravura também sofria a influência de artista estrangeiros, americanos e europeus voltados para a renovação técnica e temática. Ele, convicto de sua concepção expressionista, fiel à valorização dos meios genuínos da gravar, sorria irônico:
– Isso não é gravura, é estampagem.
Goeldi se referia a um tipo de gravura – particularmente a que então fazia Fayga Ostrower –, usando grandes placas de madeira e impressa em cores. É que, para Goeldi, o uso da cor na gravura havia sido uma conquista difícil e lhe custara anos de trabalho e apuro.
– A cor na xilogravura – dizia ele – deve ter um caráter próprio, diferente da cor na pintura ou na estampagem. A cor na gravura tem que ser “gravada”.
E, de fato, quando se observam as gravuras dele em que aparece a cor, esta possui um caráter especial que lhe empresta expressão própria. Basta lembrar a célebre xilo Guarda-Chuva Vermelho, na qual a cor vermelha do guarda-chuva, ao mesmo tempo em que fulge como um relâmpago na composição de formas negras, integra-se na linguagem xilográfica do mesmo modo que as demais formas: a cor não está apenas impressa, mas efetivamente “gravada”.
Ao afirmar que Goeldi era um legítimo expressionista, refiro-me precisamente tanto a essa entrega passional à expressividade intensa da obra criada, como também à exigência ética do trabalho artístico: a placa de madeira mal-lixada, o uso da palma da mão para calcar o papel sobre a chapa entintada. Enfim, a rejeição a todo e qualquer recurso técnico sofisticado que o afastasse da relação direta do artesão com sua linguagem genuína.
Goeldi muito cedo tomou conhecimento das obras do expressionismo alemão, a que aderiu com entusiasmo, ao visitar uma exposição do grupo Der Blaue Reiter. O expressionismo, nascido de uma atitude de certo modo romântica em face da arte e da vida, rejeitava a civilização industrial e a ela opunha o retorno às fontes primitivas da cultura humana, em que se inclui a arte. A valorização do artesanato como meio de criação artística expressa também a contestação às novas técnicas industriais, que eram vistas pelos expressionistas como uma ameaça à verdadeira criação estética.
Por isso mesmo, os artistas em que se inspiraram foram principalmente Vicent van Gogh e Paul Gauguin, o primeiro por lhes indicar a ruptura com a visão objetiva do real, e o segundo por ter feito de sua própria vida um exemplo de rejeição à civilização européia moderna, ao transferir-se para a Polinésia, onde viveu o resto de sua vida. Sem fazer uma opção tão radical, os primeiros expressionistas alemães trocaram a cidade pela floresta, passando a viver e trabalhar às margens do lago Moritzburg.
Nosso Goeldi entendeu a opção expressionista como uma busca da própria individualidade, do que há de mais autêntico no mais fundo de cada um de nós. A expressão dessa autenticidade seria o próprio objetivo do trabalho artístico. Por isso mesmo, não tinha sentido para ele, adotar, seja técnica seja tematicamente, os procedimentos de outros artistas, mesmo aqueles que ele mais admirava, como Gauguin e Munch, em cujas obras e postura estética se inspirou.
Coerente com tal ponto de vista, não percebia nas vanguardas artísticas mais do que um experimentalismo inconseqüente, que nada tinha a ver com o que considerava a verdadeira arte. Referia-se ironicamente ao jargão da época, quando os artistas falavam de suas “experiências”, afirmando que eles passavam a vida experimentando sem realizar efetivamente a obra.
– Eles próprios dizem que suas obras são “experiências”, e passam a vida inteira “experimentando”, sem nunca chegarem a realizar a obra propriamente dita. Arte não é experimento, é realização – afirmava ele.
Independentemente dessa atitude contrária ao espírito experimentalista que caracteriza a arte contemporânea, Oswaldo Goeldi foi um inovador, mas inovador que se preocupava em dar densidade e humanidade à sua obra de gravador. Outro aspecto a ressaltar na personalidade deste grande artista é a coerência que identifica a exigência estética do artista com o comportamento ético do homem – o homem que ele foi, modesto, íntegro e afetuoso.