Sem se dar conta, o presidente da Fundação Bienal de São Paulo, sr. Carlos Brakte, expõe a contradição básica de um tipo de arte que se quer rebelde e institucional ao mesmo tempo
Um estudante de Jornalismo, de 21 anos, chamado Cleiton Campos, entrou na 25.ª Bienal de São Paulo com um pequeno quadro de sua autoria e o pôs em uma das salas da mostra, como se o quadro fizesse parte dela. Deixou-o ali e foi embora. A partir daquele momento, tornara-se expositor no famoso certame internacional do Parque Ibirapuera.
Embora a imprensa não tenha dito isto, estou certo de que foi o próprio Cleiton quem telefonou para algum jornal ou emissora de televisão para dar notícia de sua traquinagem, que logo virou manchete. Se não tivesse feito isso, ninguém teria notado a presença de sua pequena tela clandestina em meio a tanto treco sem graça que a Bienal expõe, desde pedaços de madeira ou metal até papelão rasgado, tudo isso preso nas paredes ou pendurado, ou mesmo solto no chão.
O gesto não regimental de Cleiton tornou-se conhecido da mídia e da direção do certame. E sabem qual foi a reação do sr. Carlos Bratke, presidente da Fundação Bienal de São Paulo? Ele aprovou a iniciativa do jovem por considerar que a tela representava “uma obra de arte conceitual”.
“Acho que o rapaz é muito inteligente”, declarou. “A polêmica que causou foi digna de um bom artista performático”. Perguntado se a pequena tela seria mantida como parte da exposição, Bratke respondeu: “Não vou analisar o quadro em si, mas [Cleiton] conseguiu superar, em comoção, os outros artistas performáticos. E sem ter sido convidado! Acho que tem futuro na arte conceitual”.
O fato merece algumas considerações por ser bastante elucidador de um certo tipo de atividade dita artística e das instituições que o promovem. O presidente da Bienal afirma que o jovem Cleiton tem futuro na arte conceitual, pois superou os outros artistas performáticos que fazem parte da mostra, “e sem ter sido convidado!”.
O sr. Carlos Bratke parece não se dar conta do que afirma: se o rapaz tivesse sido convidado, seu gesto simplesmente não teria ocorrido, já que consistiu em introduzir sua tela numa mostra para a qual não fora convidado. A “obra” é isso! E se com esse gesto ele superou os que foram convidados – conforme a avaliação do próprio presidente da Bienal – devemos concluir, primeiro, que os bons artistas são os que não aceitam o convite da Bienal para expor; segundo, que os que expõem na mostra não têm qualquer importância, pois o que realmente conta é provocar escândalos. Arte (se se pode chamá-la de Arte) para a mídia, o que não passa de exibicionismo.
Dessa forma o sr. Bratke põe em luz, sem se aperceber disso, a contradição básica deste tipo de manifestação que se quer rebelde e institucional, ao mesmo tempo. É essa contradição que o torna paradoxal ao aprovar um ato que infringe o regulamento da instituição que dirige e considerar o infrator “artisticamente” superior aos que se submeteram ao regulamento. E nisso ele tem razão, pois, quem opta por manter-se fora de qualquer norma ou limite, como artista, não deveria nunca aceitar participar de exposições institucionais, uma vez que “institucional” é o que institui, estabelece, obedece a normas. Seria possível conceber Rimbaud ou Lautréamont candidatando-se à Academia Francesa?
Com isso fica evidente a pouca seriedade de tal arte e de tais instituições, assentadas sobre uma base farsesca: “Você finge que é rebelde e eu finjo que acredito...” Sim, porque também um dos luxos da burguesia, hoje, é ser, além de rica, antiburguesa, “rebelde”, apropriando-se assim da única coisa que restava aos seus opositores.
Por isso mesmo, a ***** fica de fora: o presidente da Bienal não pode condenar a violação do regulamento da instituição que dirige porque, se o fizer, estará contra a “rebeldia”, que a Bienal está ali para acolher e prestigiar. Ou seja, se a Bienal punir o rebelde, se desmascara, mostra que é uma instituição como as demais, põe em questão a modernidade da burguesia brasileira que, desse modo, pareceria burguesa...
Outros artistas já procuraram explorar as contradições das mostras oficiais. Na mesma 25.ª Bienal, surgiu uma proposta que, embora partindo de um artista convidado, atingia diretamente as normas da exposição: abrir, em algum ponto do prédio, uma porta clandestina por onde o público pudesse entrar sem pagar. E mais uma vez os responsáveis pelo certame encontraram-se diante da velha contradição: como rejeitar uma proposta rebelde se somos uma instituição defensora da arte rebelde? Acredito que, secretamente, eles devem ter pensado que “rebeldia tem limites”. Deitar-se no chão, no dia do vernissage, para ser pisado pelos convidados, é uma rebeldia aceitável, mas abrir uma porta clandestina para que o público entre sem pagar é demais, é atentar contra o faturamento da mostra.
A verdade, porém, é que, mesmo praguejando contra o autor da proposta inconveniente, os responsáveis pela Bienal encontraram uma saída conciliatória: far-se-ia sim uma entrada clandestina, mas ela só ficaria aberta durante uma hora, e por ela só poderiam entrar, no máximo, cinco pessoas por dia. Trata-se, como se vê, de um novo tipo de rebeldia: a rebeldia regulamentada...
Ora, se a arte conceitual é coisa velha, os problemas que a envolvem também o são. Estão na sua origem mesma e começaram com o primeiro gesto rebelde de seu criador. Em 1917, Marcel Duchamp, que fazia parte do conselho do Salão dos Independentes de Nova Iorque, enviou para lá o seu hoje célebre urinol, assinado Mutt. O júri (rebelde) teve de aceitar a “obra”, mas a contragosto, tanto que, na hora de expô-la, a escondeu. No dia do vernissage, Duchamp procurou por seu urinol e só foi encontrá-lo, depois de muito tempo, atrás de um tabique, nos fundos do salão. Zangou-se e se demitiu do conselho.
Queria que sua rebeldia fosse aceita pela instituição. Ele foi, portanto, não só o inventor da “antiarte” (mudada para “arte conceitual”), como também o primeiro a viver a condição contraditória que haveria de acompanhá-la até os dias de hoje: a de ser rebeldia financiada e oficialmente reconhecida.
A lição que se deve tirar disso tudo não é a de que não se deve ser rebelde, mas, sim, a de que não se deve fingir-se de rebelde. Fora disso, sabe-se que o valor da arte não está em ostentar rebeldia, mas em ser efetivamente expressão do talento e da mestria do artista, para com isso deslumbrar ou comover as pessoas. O cinismo niilista de Duchamp, compreensível em sua época, não tem mais cabimento.