A obra de Oiticica não será “um tesouro de criatividade” apenas porque pretendia contestar o establishment
A galeria Fortes Vilaça, de São Paulo, está exibindo um trabalho inédito de Hélio Oiticica, realizado em 1973, quando ele vivia em Nova York. Chama-se Cosmococa e consiste em cinco séries de fotos, cinco instalações, um pôster e um livro, tudo feito em colaboração com o cineasta Neville D’Almeida.
Segundo afirmação do próprio Neville, a obra surgiu de uma página de jornal – a capa do suplemento literário do New York Times – que trazia uma foto grande de Luis Buñuel. Os dois então viram nisto uma “abertura sem precedentes da auto-referente cultura norte-americana para o estrangeiro” e decidiram compor “um arco de homenagens” a outras figuras também supostamente discriminadas pela imprensa americana: Jimi Hendrix, Yoko Ono, Marilyn Monroe e John Cage. A homenagem consistiu, basicamente, em enfeitar de cocaína as fotos dessas personalidades e com elas compor cinco instalações. O objetivo, ao que se deduz, era denunciar a estreiteza do establishment ianque. A cocaína funcionaria ali como a expressão da liberação total dos valores convencionais, que Hélio e Neville contestavam, drogando-se.
Mas a obra não se limitava a essa contestação. O objetivo era criar uma nova expressão visual – intitulada por eles de “quasi-cinema” – e que consistia na projeção de fotos em slides “de modo a quebrar a tradicional postura do público diante da tela de projeção de um filme”. Assim, em vez do público se sentar em “rígidos assentos”(poltronas), acomodar-se-ia em colchões e redes. As projeções seriam feitas em várias paredes e, com isto, seria quebrada “a linearidade narrativa do cinema”. Conta Neville que ele e Hélio, então, conversavam muito sobre “a necessidade estética e espiritual de se libertarem do caminho do cinema convencional”. Chama a atenção este ponto, uma vez que Hélio Oiticica não era cineasta e Neville D'Almeida nunca mostrou em seus filmes – de feição realista – qualquer inquietação experimentalista. Seria então um “barato”daquele momento?
De qualquer modo, Cosmococa, desgraçadamente, não teve oportunidade de mudar o establishment norte-americano, uma vez que ficou inédita até hoje, deixando assim intactas a sociedade capitalista e a arte cinematográfica, cujo público, para seu desconforto físico e espiritual, continua a sentar-se em poltronas, em vez de deitar-se em colchões. Mas quem sabe, agora, depois da exposição na Galeria Fortes Vilaça, as coisas mudem.
A iniciativa da família Oiticica e da referida galeria de exibir o referido trabalho ajusta-se perfeitamente à ordem natural do mercado de arte, uma vez que qualquer coisa que leve o nome de Hélio Oiticica vale hoje uma pequena fortuna, o que parece em parte justificar o destaque dado pela imprensa paulista a um trabalho, sem dúvida alguma, secundário no conjunto da obra desse artista. Por isso, causa espécie o modo como é tratado o assunto pela crítica de arte Angélica Moraes que não hesita em afirmar tratar-se de “um tesouro de criatividade e testemunho de época”. Mas, ao mesmo tempo, ela se antecipa a supostos censores, advertindo-os contra “uma falsa denúncia (sic) de apologia das drogas”, o que implicaria em “cancelar o exercício de liberdade que a arte pressupõe”. Ela toma todo esse cuidado para ressalvar o fato de que o elemento essencial da referida obra é a cocaína. Mas não esta cocaína de hoje – apressa-se em esclarecer – “sinônimo de violência genocida”, mas sim a cocaína dos anos 70, que constituía o “paraíso artificial” de Hélio e Neville.
Como se sabe que foi exatamente a difusão da droga, promovida por artistas famosos, naquela época, que contribuiu de maneira decisiva para a ampliação do tráfico em escala internacional, a sua apologia, feita pela obra agora exposta, tem que inevitavelmente ser vista como fruto de uma atitude equivocada, que via na cocaína a libertação do ser humano, quando ela iria traçar “a trilha de sangue” dos dias atuais, para usar a própria expressão da crítica paulista.
Não resta dúvida que estas não são questões estéticas e que o trabalho de Hélio Oiticica não deve ser exaltado ou condenado em função disso. O que importa, na apreciação de qualquer obra de arte, é o que ela significa como expressão criadora, como elaboração formal e revelação de uma alguma coisa nova e essencial. Do mesmo modo que um poema de temática social não adquire qualidade estética apenas por defender causas justas, esta obra de Oiticica não será “um tesouro de criatividade” apenas porque pretendia contestar o establishment ou os valores burgueses. Valerá se, como elaboração da linguagem e dos valores estéticos, alcançar o nível de expressão que define a obra de arte. Por isso, tanto será descabido negá-la por fazer a apologia da cocaína como exaltá-la por essa mesma razão. Todas as pessoas que têm algum conhecimento da história da arte sabem que, no curso do tempo, de tanto livro que foi escrito, de tanto quadro que foi pintado, de tanta peça que foi montada, com o objetivo de condenar ou exaltar certas idéias e valores ou anti-valores, só permaneceram aqueles que transcenderam a contingência do momento para conseguir expressar o permanente da experiência humana. Maquiar fotografias de seus ídolos com pó de coca pode conter em si alguma rebeldia – igual a ficar nu num museu naquela época – mas tais gestos, legítimos como exercício de liberdade individual, não costumam ir além do efeito momentâneo e limitado. A arte, como se sabe, sempre foi muito mais que isto.
Sempre haverá alguém para argumentar que a época é outra e que hoje o que importa é o efêmero, que é afinal de contas a condição real da própria existência. Esta é um opção a ser feita. Poder-se-ia acrescentar que o caráter moderno do efêmero na arte está em perfeito acordo com o sistema econômico que rege a sociedade atual: para o capitalismo é fundamental que a geladeira, o carro, o fogão, o liqüidificador, durem o mínimo possível, a fim de que as fábricas continuem a produzir e o comércio a vender. A vontade de permanência, ao contrário, nasceu com o ser humano e foi ela que levou o homem a inventar os instrumentos reais (tecnologia) e simbólicos (arte) que o ajudam a manter-se vivo e construir a sua humanidade.