O movimento Fluxus surgiu no começo da década de 1960, dizendo-se herdeiro das vanguardas históricas e especialmente da LEF e do Dadaísmo. Seu fundador e principal teórico, o lituano George Maciunas, pretendia que não houvesse distinção entre as obras de arte e os objetos comuns, como os que se compram nas lojas. Este movimento, que se estendeu até os anos 70, não é muito conhecido no Brasil, a não ser por um grupo restrito de artistas e críticos que se interessam ou acompanham as tendências ditas experimentais. Somente agora, no Centro Cultural do Banco do Brasil, no Rio de Janeiro, tem o público a oportunidade de conhecer um número considerável de obras dos artistas fluxus.
A exposição reúne dezenas de obras, todas elas pertencentes a um colecionador particular. São, como raríssima exceção, trabalhos de pequeno porte e que podem ser classificados, de modo geral, como obras gráficas, colagens e conjuntos de objetos. Os trabalhos das duas primeiras categorias não são mais que variações de experimentos realizados pelos dadaístas e surrealistas, só que, diga-se de passagem, como muito mais humor e originalidade; é na terceira categoria, ou seja, dos conjuntos de objetos que se situam os trabalhos mais tipicamente fluxus.
Mas que objetos são esses? Às vezes são brinquedos comprados em lojas ou, por exemplo, pedras de xadrez, pesos de vidro, tubos de vidro, um ovo de plástico, um cofre em forma de porquinho, etc. Tais objetos estão quase sempre apresentados dentro de pequenas caixas de madeira ou de plástico transparente, ou em bauzinhos forrados de tecido; nem sempre todos os objetos estão dentro das caixas; na maioria das vezes estão, em parte, fora delas, cuidadosamente colocados ali, de modo a resultar um conjunto interessante. Tanto na escolha dos objetos como na sua disposição impera um extremo bom gosto. Nada, portanto, que lembre a rebeldia, a contundência ou o inconformismo dos dadaístas e surrealistas. Pelo contrário, pode-se afirmar, sem exagero, que tais conjuntos de objetos parecem feitos para enfeitar a sala de visitas de delicadas senhoras de bom gosto. Afora isto, a impressão geral que a exposição me deixou foi de déjà vu, não por ser uma retrospectiva já que, para nós, o movimento Fluxus era até então praticamente desconhecido. Creio que a sensação de déjà vu está em sua origem mesma, uma vez que não trouxe qualquer contribuição nova à arte contemporânea. Trata-se de fato de uma diluição do que já havia sido feito muitos anos antes. Até mesmo o conjunto de objetos são uma decorrência dos read-mades de Marcel Duchamp, mas sem a ácida irreverência do dadaísta: em vez do urinol, o bibelô...
Para resumir, em poucas palavras, o pensamento de Maciunas, diria que se trata, no plano teórico, de uma decorrência da visão anti-arte de Duchamp, particularmente no que se refere ao read-made. Duchamp afirmava que, ao escolher, entre os objetos comuns, um read-made, procurava fazê-lo sem qualquer emoção ou interesse estético, quase com indiferença. Não é outro o pensamento de Maciunas quando diz que não deve haver qualquer diferença entre os objetos comuns e uma obra de arte, chegando mesmo a profetizar o dia em que a arte desaparecerá e os artistas passarão a se ocupar de outras coisas. Não obstante, escreve manifestos e promove exposições de suas obras e de seus seguidores, em galerias de arte e museus, numa atitude que contradiz as suas teorias. Se o ideal fluxus é não haver distinção entre e arte e não-arte, o coerente seria não fazer obra alguma, uma vez que selecionar objetos e dispô-los em conjuntos artisticamente concebidos, é levar o espectador a fazer a distinção que consideram indevida e tentar inseri-los na categoria de obra de arte.
Esta é a contradição insuperável que constitui o impasse dos movimentos anti-arte. Se de fato o seu interesse fosse não fazer arte, limitar-se-iam a ocupar-se de outra coisa qualquer. Fazer anti-arte é na verdade tentar fazer arte fora de todos os fatores e princípios consubstanciais a ela. Aliás é o que afirmou um outro teórico do Fluxus: “remover do conceito de arte o que estabelecia a distinção (com os demais objetos): a inspiração, a exclusividade, a complexidade, a individualidade, a raridade, a ambição, a importância.” Faltou incluir aí a inventividade, a criatividade e a emoção.O movimento Fluxus quer substituir a obra de arte por objetos corriqueiros, feitos sem intenção artística, como brinquedos, vidros de remédios, etc. O impasse consiste em que, sem aquelas qualidades, o que for feito, não expressará nada de próprio, não terá qualquer relevo ou importância — perder-se-ia na mesmice dos inumeráveis objetos produzidos em série para atender a um público sem qualquer exigência estética. Só chamam a atenção, se são destacados dos outros, isolados, como fez Duchamp com seus read-made. A pergunta é: o que se ganha em não criar nada que contenha criatividade e emoção?
O que se ganha em exterminar a arte e os artistas?
A atitude de Maciunas e seus seguidores é apenas a anulação da capacidade criadora do artista, que é assim estigmatizado como um ser indigno e desprezível. Noutras palavras, a afirmação da banalidade, da massificação em detrimento da individualidade criadora. Não por acaso, eles mesmo comparam esta atitude à da Revolução Cultural Chinesa que transformou artistas e poetas em meros trabalhadores noturnos, vendo nisto uma “atitude radical de igualdade”. Assim se explica também a afirmação de Josef Beuys, segundo a qual “todo mundo é artista”. Claro, se o que não é arte passa a ser tido como tal, não é preciso ser artista para fazê-lo.
Esta atitude de suposta humildade — que vê na criação artística não a necessidade de criar mas apenas mera pretensão e vaidade — decorre de uma visão equivocada e primária da igualdade dos seres humanos. Só mesmo sectários do tipo maoísta não percebem que os homens são iguais em direitos e deveres mas não em suas qualidades pessoais. Do mesmo modo que não é qualquer um que pode compor a Tocata e fuga, não é qualquer um que joga futebol como Ronaldinho ou possui a capacidade matemática de um Einstein. Negar o talento criador das personalidades artísticas e nivelar todas as pessoas por baixo é um exercício de infantil niilismo que desconhece a função da arte na fundação dos valores sociais e na vida das pessoas. Ou seja, uma bobagem pretensiosa e nada mais.