As Bienais encontram-se em situações contraditórias em face de certas propostas artísticas
Há algumas décadas – até os anos 60 do século passado –, as Bienais de artes plásticas ocupavam espaço considerável nas revistas, jornais e na televisão. A inauguração da Bienal de São Paulo era um acontecimento de expressão nacional e internacional, seguida da apreciação feita pelos grandes nomes da crítica de arte. As premiações tinham poder consagratório com repercussão em todo o mundo artístico que, naquela época, compreendia também importantes revistas de arte editadas em Paris, Milão, Berlim, New York ou Londres. É desnecessário dizer que nada disto existe hoje, quando tais certames artísticos perderam qualquer significado cultural para se transformarem em eventos pitorescos aonde o público vai para se divertir com as extravagâncias apresentadas.
Não se trata de escândalos – é bom que se diga –, uma vez que o freqüentador das Bienais de hoje já espera pelo extravagante, o que obriga o “artista” a esforçar-se por se superar na sacação de obras cada vez mais distantes de tudo o que, no passado recente, ainda era considerado arte.
Lembro-me de uma Bienal de Veneza em que a obra mais chocante foi um tubarão cortado ao meio e posto dentro de uma caixa de vidro com formol. Em nossa Bienal de São Paulo, divertiu muito a garotada um japonês que, toda quinta-feira à noitinha, fantasiava-se de pescador submarino e ficava batendo água numa piscina de plástico. Na última Bienal paulista, a proposta extravagante consistiu numa porta alternativa por onde o público entraria sem pagar, o que ameaçava levar o certame à falência. A solução encontrada pela direção da Bienal foi abrir, nos fundos da mostra, uma portinhola que só permitia a entrada de cinco pessoas e num horário determinado.
Na Bienal de Veneza deste ano, como era de se esperar, a busca de novas extravagâncias continuou, destacando-se as fotos enviadas por uma fotógrafa canadense e que foram feitas com a ajuda de um cão: ela acoplou uma máquina fotográfica no animal e o soltou na neve. As fotos fora de foco, assim obtidas, foram obviamente aprovadas pelo júri e exibidas com a indispensável informação, a fim de que o público não pensasse que aquilo era obra de algum mau profissional, o que comprometeria a autoridade dos jurados; sendo o fotógrafo um cachorro, estava tudo bem.
Mas esta não foi a mais caprichosa idéia apresentada na Bienal de Veneza. A glória desta vez coube a um artista do terceiro mundo, um venezuelano, que propôs erguer-se um muro fechando a entrada do pavilhão espanhol. Como se vê, é o mesmo tema da entrada na Bienal de São Paulo, só que com sinal trocado: se a proposta anterior franqueava a entrada sem nada cobrar, a de agora impedia a entrada mesmo para quem pagasse. Mas o artista deixou uma alternativa a quem realmente quisesse adentrar o vedado pavilhão: havia uma passagem no muro que permitia a entrada dos visitantes, mediante a apresentação do passaporte espanhol. O cara, sem dúvida, é um gozador, e a impressão que dá é que o alvo da gozação é a própria Bienal de Veneza.
Conforme contou Maria Tomaselli, em comentários que publicou na imprensa de Porto Alegre, sobre a referida Bienal, o presidente do museu Guggenheim, de New York, foi impedido de entrar no pavilhão da Espanha por não possuir o exigido passaporte. Parece que conseguiu penetrar por uma porta dos fundos.
Já tive oportunidade de observar nesta coluna, que a instituição Bienal encontra-se numa situação contraditória em face de certas propostas dos artistas: por ser uma instituição, tem normas que devem ser obedecidas, mas, ao mesmo tempo, por ser de “vanguarda”, está obrigada a aceitar a quebra das normas. Assim, se o júri aprova a construção de um muro fechando a entrada de um pavilhão, a direção da Bienal tem que mandar construí-lo, embora isto contrarie as normas que regulamentam o funcionamento da exposição e, além do mais, tem de submeter-se a qualquer disparate, como essa exigência de passaporte para entrar num pavilhão...
Não é preciso muita perspicácia para perceber que este tipo de provocação tem por alvo a Bienal como instituição. Propor ao júri, como obra de arte, um tubarão cortado ao meio era um modo de questionar o conceito de arte e só indiretamente a Bienal como certame artístico. Mas quando se propõe abrir uma porta alternativa para a entrada gratuita dos visitantes ou erguer um muro fechando um pavilhão, o objetivo é desautorizar o caráter institucional da Bienal e submetê-la ao ridículo. De fato, se o espírito que preside a tais iniciativas é da total desconsideração por todo e qualquer princípio ou limite, não tem cabimento a permanência de instituições artísticas como espaço de exibição de obras ou não-obras de arte. Essas manifestações aqui referidas, coerentes com a visão duchampiana de que arte é tudo o que se chamar de arte (o que implica negar qualquer conceito de arte), no fundo denunciam a contrafação de instituições como as Bienais. Se tudo é arte, não há razão para expor coisa alguma, basta olhar em volta...
Não obstante, é preciso ir mais fundo no exame desta questão. Sabe-se que interesses de tudo quanto é ordem estão envolvidos nesse mundo supostamente anti-artístico e rebelde. A Bienal de Veneza, como a Documenta de Kassel, tornaram-se parte da programação turística das prefeituras dessas respectivas cidades. Mantê-las funcionando interessa, não apenas às empresas diretamente ligadas ao turismo, como aos políticos, aos industriais, aos banqueiros, que têm seus negócios vinculados a essas cidades e usufruem da badalação que estas mostras suscitam. Tampouco estão fora desse jogo de interesses os próprios anti-artistas que, em função do escândalo, tornam-se conhecidos e vendem tudo o que inventarem fazer, desde picolé de água e miniatura de pirocas até coisas fora de moda como guaches e desenhos.