Fonte: Revista Continente Multicultural

 Numa época em que, salvo engano, as artes plásticas parecem viver um de seus momentos mais críticos, tenho tentado aqui, de maneira assistemática – tateando, por assim dizer – refletir sobre alguns aspectos da crise e, particularmente, sobre as origens dela. O que conduziu a arte à situação em que se encontra hoje?

Um dos fatores que me parecem constantes no processo que conduziu à desintegração das linguagens artísticas, é a eliminação do elemento imaginário na realização da obra. Explico-me: a partir do Realismo, em meados do século 19, o artista tratou de eliminar da obra tudo o que fosse literatura, fantasia, para fixar-se no mundo real.

 Hoje, gostaria de examinar de que modo essa busca da arte realista, sem ilusões, manifestou-se na pintura de Paul Cézanne, o artista que se tornou o marco divisório entre a arte do passado e a arte contemporânea.

 Como se sabe, o Impressionismo encarou a natureza como mero fato perceptivo, uma soma de sensações cromáticas. Isto significa que, para eles, a natureza era apenas um fenômeno sensorial, presente, sem história, sem cultura, sem passado e sem mistério ontológico: a aparência é a essência. E porque a cor é na verdade vibração luminosa, que muda com o passar dos minutos, a realidade é percebida pelos impressionistas como um devir, um fluir do tempo.

 No quadro, tudo resulta objetivamente numa linguagem fluida, amorfa, sem estrutura. Cézanne é o pintor expressionista que reage a isto, pois, conforme suas próprias palavras, queria fazer do Impressionismo algo sólido e durável como a arte dos museus.

 Para consegui-lo teria que evitar o pontilhismo, a pequena pincelada repetida e fugaz. Para captar, como desejava, a estrutura interior da paisagem, ou, melhor dizendo, inventá-la no quadro, teve que enveredar por um caminho inesperado e contraditório que revolucionaria a linguagem da pintura.

 Mas façamos uma pausa para refletir sobre a aventura cezanneana. Ele afirmou: Não sou romântico e, depois, quero a verdade. Noutras palavras, seguidor da visão realista, queria criar sem se valer de quaisquer dos recursos que o Romantismo havia posto em voga e o Realismo rechaçara. Não obstante, tampouco desejava imprimir a seus quadros a fidelidade quase fotográfica do realismo de Corot.

 Eliminar da pintura toda a fantasia, toda a literatura, toda a ilusão sem ao mesmo tempo conformar-se com o realismo tout court nem com a notação sensorial impressionista, é o desafio de Cézanne. Mas, consciente da necessária transcendência da arte, se não podia conformar-se com a cópia do real nem tampouco lhe bastava o mero registro de sensações. Ele afirmou: quero captar o sentido oculto da natureza. Tentou, assim, fazer a síntese de coisas antagônicas: a fluidez e a permanência, o frescor da experiência primeira (la petite sensation) e a estrutura sólida.

 Então as questões se colocam: como alcançar aquele sentido oculto mantendo-se na superfície da sensação, na aparência do real? Como superar a aparência sem sobrepor-lhe nenhuma fantasia?

 É o impasse. E este impasse, ao que me parece, determinará o rumo tomado pela pintura de Cézanne e que resultou numa ruptura com a linguagem pictórica tradicional. A questão assim se coloca: se não era possível nem sobrepor a fantasia ao real nem simplesmente copiá-lo, a solução foi, para Cézanne, transfigurar a própria linguagem pictórica sintaticamente. Noutras palavras: se a pintura não mais narra, não mais simboliza, não mais expressa o imaginário, o único modo de imprimir-lhe transcendência é negá-la não apenas como cópia da realidade mas também como herdeira da pintura que a copiou.

 Cézanne o consegue acentuando a materialidade da linguagem pictórica e invertendo a relação semântica entre pintura e realidade: o lago que aparece na paisagem pintada não quer imitar a água – mas ser apenas uma mancha de azul; a casa não quer ser uma casa – mas apenas manchas de laranjas e amarelos. Ele o diz: o milagre aí está, a água mudada em vinho, o mundo mudado em pintura.

 Como homem dos tempos modernos, que não podia ignorar a ciência e a concepção material do mundo, Cézanne não concebe a pintura desvinculada da natureza. Nem o poderia, pois, a alternativa seria entendê-la como veículo de concepções intelectuais, fossem elas literárias, teatrais ou históricas, como fizeram os pintores no passado.

 A ruptura drástica com todas essas concepções é que o obriga a descobrir um novo caminho, pois, ao libertar a pintura tanto da visão literária como da sujeição à realidade, ele lhe dá uma autonomia que ela nunca havia conhecido. Como escreveu Maurice Denis, as maçãs pintadas por outro pintor despertavam no espectador a vontade de comê-las, mas as maçãs pintadas por Cézanne os faziam exclamar que belas!. Isto significa que as maçãs de Cézanne, antes de serem frutas, são pintura, objetos do mundo pictórico não do mundo natural.

 No entanto, ao mudar o mundo em pintura, ou seja, ao dar à maçã uma outra realidade, uma outra substância, ele, contraditoriamente, desvincula a pintura da natureza, essa natureza, sem a qual, na sua própria opinião, ela não existiria.

 Precisando melhor: Cézanne, ao transformar a natureza em pintura, torna a pintura uma questão linguística mas, por partir da natureza, ainda está sujeita a ela. As suas maças não são reais, mas nascem delas; os ramos vigorosos do Grande Pinheiro não pertencem mais à flora, não obstante ainda são metáfora de ramos; ou seja, na pintura de Cézanne, a natureza está se mudando em pintura mas ainda não completou essa mudança. E não a completou porque, para fazê-lo, seria necessário esquecer a natureza, não mais tomá-la como fonte da obra. Era somente um passo mais a ser dado mas um passo que viraria a pintura de cabeça para baixo. Este passo foi dado por Picasso e Braque quando abandonaram as paisagens do Estaque e as coisas do mundo exterior para pintar a partir dos elementos linguísticos da pintura: partiram da tela em branco e criaram novos objetos: as guitarras, frutas ou garrafas, que então aparecem em seus quadros só existem ali: foram inventados.

 Sem dúvida há fantasia nesta pintura, mas uma fantasia que nada tem de literário ou simbólico: a fantasia da linha, da cor, da forma, da matéria.