Fonte: Ferreira Gullar

 

Amílcar de Castro pertenceu a uma geração de artistas que promoveu a ruptura com o Modernismo brasileiro. Se é verdade que o movimento de 1922 nas artes plásticas não se caracterizou por uma única tendência, já que nele coexistiram ecos do Expressionismo, do Cubismo, do Art décor e do Surrealismo, é inegável que nele predominou a temática nacional que, a partir dos anos 30, adquiriu um cunho social e político, particularmente na pintura de Cândido Portinari e seus seguidores.

 Essa linguagem figurativa e estilisticamente eclética foi rejeitada pelos jovens artistas que constituíram a geração dos anos 50 e da qual Amílcar de Castro se tornaria uma das expressões mais destacadas. Falecido em 2002, foi homenageado recentemente na 5ª Bienal do Mercosul, em Porto Alegre, com uma mostra retrospectiva abrangendo todas as etapas de sua obra. Ali estavam expostas peças realizadas nos anos iniciais de sua carreira, até os derradeiros trabalhos datados do ano de sua morte.

 Como se sabe, Amílcar de Castro, nascido em Minas Gerais, foi para o Rio em 1952, juntando-se ao grupo que se formou em torno do crítico Mário Pedrosa, o principal defensor, no Brasil, das idéias concretistas, originárias do grupo de Ulm, liderado por Max Bill. Cabe observar, no entanto, que Mário não se limitava a difundir a concepção européia – aqui chegada através do grupo argentino Nueva Visión –, mas refletia sobre a proposta de uma nova arte, desvinculada do vocabulário figurativo e das referências nacionais e regionais que caracterizavam o nosso Modernismo. Antidogmático por natureza, o crítico brasileiro estimulava, no âmbito da nova linguagem, as buscas individuais autônomas. Isso se expressa no surgimento de caminhos originais seguidos por cada um dos integrantes do grupo que em torno dele se formara. Este é particularmente o caso de Amílcar de Castro que, após um período inicial de grande ansiedade, logo encontrou os elementos básicos de sua arte.

 Amílcar fez parte do grupo neoconcreto e pode-se dizer que sua escultura, por suas características intrínsecas, constitui um dos pólos daquele movimento artístico, em contraposição ao rumo tomado por Lygia Clark e Hélio Oiticica; tanto a obra dele quanto a de Lygia nasceram de uma radicalidade que não existia na arte concreta e que definiu o neoconcretismo como um movimento particularmente significativo da arte contemporânea. Lygia, ao eliminar da pintura o espaço representativo, defronta-se com a tela em branco, sobre a qual age materialmente, dando origem aos futuros “bichos”; já Amílcar, excluindo da escultura a massa, chega à placa bidimensional (a antiescultura) de que partirá para criar sua própria linguagem escultórica. Mas, ao contrário de Lygia, que caminha para a desintegração da linguagem artística e desemboca em experiências puramente sensoriais, ele se atém à placa bidimensional para explorar-lhe as possibilidade expressivas, valendo-se apenas do corte e da dobra.

 No corte e na dobra começa a escultura de Amílcar. A placa, invencivelmente calada e imóvel, enfim se anima e fala. Uma fala primeira, mínima, que jamais se desenvolve em discurso. Uma fala que se refere à sua própria origem e retorna incessantemente a ela, porque, na verdade, quase todas as obras que ele realizou, desde aquele remoto momento inicial, são variações daquela primeira obra. A placa muda de forma – ora é quadrada, ora circular, ora paralelogrâmica –, muda de proporção, muda de espessura, mas como conseqüência do mesmo recurso expressivo: o corte e a dobra. E é o próprio Amílcar que dirá, mais tarde, que sua escultura é a busca da origem da própria escultura. Sim, porque, o que definia o neoconcretismo em sua expressão essencial era precisamente a busca do fundamento da própria arte, que as vanguardas puseram em questão. Por isso mesmo, Lygia e Hélio terminam por abandonar a produção da obra enquanto objeto expressivo em si mesmo para entregar-se a experimentos sensoriais – o que significa limitar a expressão a seus elementos originários. A diferença entre eles e Amílcar é que este, chegado à cota zero, não desistiu da reconstrução.

 Ao longo dos anos, o procedimento da expressão mínima, em Amílcar, se enriquece com novos elementos que, no entanto, não alteram sua natureza, antes a acentuam, como ao usar a placa de ferro espessa, de grande formato que, por ser espessa e grande, valoriza tanto o corte quanto a dobra. Como se vê, é a superfície que fala e fala, conforme suas qualidades materiais, se menor ou maior, se mais espessa ou mais delgada.

 A partir dos anos 80, Amílcar encontrou um caminho alternativo em sua expressão, deixando de valer-se do procedimento corte-dobra, abdicando, nesses casos, da criação do volume virtual. Naqueles trabalhos, em vez da placa, usa blocos de ferro, em que o corte vale por si mesmo e não como um meio para possibilitar a dobra: é feito para permitir a penetração do espaço no bloco compacto de metal ou para possibilitar a inserção de um bloco no outro. Nesses trabalhos, que se estenderão até o final de sua carreira, Amílcar parece retomar a problemática da escultura enquanto massa, talvez a ajustar contas com o passado. Mas ainda aí mantém o extremo despojamento de meios como o fator essencial da expressão escultórica.