Fonte: Revista Continente Multicultural

 Nenhum artista anterior a ele questionou tão radicalmente a expressão artística

Depois de muitos anos, reencontro-me com os trabalhos de Hélio Oiticica, no vídeo de Kátia Maciel, intitulado H.O. O supra-sensorial, que me possibilitou rever as diferentes etapas por que passou a sua experiência artística. Tive oportunidade, em diferentes momentos, de analisar detidamente a obra de Lygia Clark – que formou com Hélio Oiticica a dupla mais arrojada da arte neoconcreta –, mas sobre ele só escrevi na época do Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, entre 1959 e 1961, e depois apenas esporadicamente. No entanto, era com ele que mantinha – à parte Lygia Clark – o diálogo mais continuado e fecundo, envolvendo nossas perplexidades, indagações e invenções. Hélio era como um irmão mais novo, que me ouvia, com quem discutia durante a vertiginosa aventura que nos arrastava naqueles anos intensos e inquietos.

 O grupo neoconcreto era constituído, como se sabe, de artistas plásticos e poetas, entre os quais Reynaldo Jardim, Théon Spanudis e eu. Reuníamo-nos com freqüência na casa de Mário Pedrosa ou de Lygia Clark, ocasião em que tomávamos conhecimento do que estava realizando ou pensando cada membro do grupo. Além disso, eu costumava freqüentar a casa de Amílcar de Castro e de Hélio, para ver seus trabalhos e conversar. Este permanente intercâmbio, acredito, foi um dos fatores responsáveis pela notável contribuição do grupo à arte brasileira, determinando em boa parte o rumo que ela tomou. Naturalmente, cada um de seus integrantes tinha seu modo próprio de perceber e interpretar as questões fundamentais implicadas na proposta inovadora do neoconcretismo. Uma dessas questões era a superação do objetivismo ótico e racionalista da arte concreta, e a outra, a audácia de avançar além dos limites em que se mantinham a pintura e a escultura modernas. Lygia e Hélio foram os que mais avançaram nesta direção, abandonando a tela e buscando inventar uma linguagem não-metafórica nascida do desenvolvimento da forma no espaço real. Foram as primeiras tentativas de Lygia que me levaram a cunhar o nome não-objeto, como um meio de assinalar sua especificidade com respeito ao que, até então, se compreendia como obra de arte.

 Minha proximidade com esses dois artistas fez com que influíssem em suas buscas algumas tentativas por mim realizadas na época: o livro-poema e os poemas espaciais. Essas tentativas culminariam com o Poema enterrado, que concebi em 1959 e pelo qual Hélio se tomou de entusiasmo, a ponto de obrigar seu pai a construí-lo no quintal da nova casa da família, na Gávea Pequena. Dele nasceriam os projetos Cães de caça de Hélio e, depois, os Bólides, que estão entre as suas criações mais significativas.

 As obras da primeira fase de Hélio Oiticica, após a ruptura com a pintura, são os Relevos espaciais, em que ele ainda tateia em busca da obra que necessitava criar e que não se limitaria à experiência visual, mas que devia somar a ela a ação manual do desvendamento (ou da invenção) do que está oculto, do que constituiria o miolo da forma-espaço-táctil.

 Os Bólides são caixas que ocultam outras caixas que, por sua vez, ocultam materiais diversos, como terra ou tecidos de cor, trapos, que lembram vísceras ou lixo. Essa idéia de uma caixa que contém outras caixas veio sem dúvida do Poema Enterrado, cujo núcleo se compunha de caixas cúbicas dentro de outras caixas mas, em meu poema, esses elementos eram, por assim dizer, formas ideais, limpas de qualquer organicidade, enquanto as de Oiticica são “sujas”, primevas, como se arrancadas a alguma dimensão misteriosa e noturna. Neste sentido, elas indicam uma espécie de abandono da forma enquanto construção intelectual, concebida com harmonia e equilíbrio. Com seus Bólides Oiticica chega ao pólo oposto à arte concreta e caminha na direção de uma linguagem severamente sensorial, onde tudo é pré-linguagem, ou melhor, onde o artista se nega a reconstruir a fala estética desconstruída e, portanto, nega-se à “arte”.

 Foi por esta razão que escrevi, certa vez, nesta coluna, que certas vanguardas não apontam para o futuro, mas para o passado. No caso de Oiticica, porém, tal opinião é incorreta. Seus Bólides não apontam para o passado, uma vez que nenhum artista anterior a ele questionou tão radicalmente a expressão artística, como ele o fez, para afirmá-la como origem, começo que não quer ser mais que isto. Começo sem futuro, se o futuro for o retorno à superfície, à fala.

O que quer dizer isso? Se, como creio, o homem se inventa também através da arte, Hélio Oiticica negou a arte para poder reinventá-la a partir de zero: qualquer caminho seria válido, menos o já trilhado. Por isso com os seus Bólides ele tenta criar um conteúdo (uma linguagem) que ele próprio desconhece porque ainda não existe e só passa a existir à medida que ele o descobre (o cria) como ocultação.

 As obras que realiza depois não possuem, a meu ver, a mesma densidade já que, ao contrário dos Bólides, não ocultam nem revelam nada, como é o caso do Parangolé, uma espécie de performance em que a forma se torna explícita através do movimento e da ação do sujeito. Esta explicitude é o preço que Oiticica pagou para vencer o impasse da pré-linguagem e, de certo modo, voltar à luz do dia.