Fonte: Revista Continente Multicultural

 

Faz um mês que morreu, no Rio de Janeiro, o pintor Glauco Rodrigues, gaúcho de Bagé e um dos últimos integrantes do grupo de artistas que, em 1951, fundou com Carlos Scliar o Clube de Gravura de Porto Alegre. Nesse período, Glauco aprimora sua capacidade de desenhar, de reproduzir as coisas do mundo com seu traço, o que vinha coincidir com o realismo socialista, tendência adotada pelo Clube da Gravura. No Rio, a partir de 1959, desenvolve seu talento de paginador e ilustrador na revista Senhor, que marca época. Os anos que passa na Europa, notadamente na Itália, num período em que a arte não-figurativa se impõe internacionalmente, Glauco também adere ao abstracionismo, influenciado pela linguagem de signos de Julius Bissier. Essa fase constituiu uma espécie de quarentena, que possibilitou a Glauco voltar às origens e retomar a linguagem figurativa com maior liberdade. De fato, era uma nova relação que se estabelecia.

 A primeira fase figurativa de Glauco caracterizou-se pela estrita fidelidade ao real. Pode-se dizer mesmo que, pelo conteúdo estético-ideológico que a determinava, era uma linguagem deliberadamente intranscendente: mostrar o real tal como era lhe bastava. A fase carioca – pela própria aplicação de seu talento às tarefas de ilustrador e paginador de uma revista sofisticada – possibilita-lhe um afastamento daquele realismo cru e a abertura para outras possibilidades da linguagem gráfica. É essa fratura do objetivismo realista que abre caminho para as experiências abstratas por ele realizadas na Europa. Por isso mesmo, o reencontro com a linguagem figurativa não poderia repetir a mesma relação dos anos iniciais. E com um fator a mais: instalara-se uma ditadura no país.

 Se a relação de Glauco com a linguagem figurativa agora é outra, a relação dessa linguagem com a realidade também é outra. Se, na fase gaúcha, a figuração nascia da observação direta do objeto, como se o artista nada mais fosse que um espelho a lhe refletir fielmente a imagem, agora, o diálogo não é diretamente com o mundo real, mas com um mundo de imagens; também não é com o país real, mas com um país imaginado. Glauco passa a se expressar através de uma metalinguagem. Deve-se observar, porém, que, apesar das diferenças entre a linguagem do final dos anos 60 e a dos anos 50, uma afinidade permanece: ambas têm conteúdo político. Só que, na fase nova, esse conteúdo se expressa de maneira mais rica e sofisticada, com recursos da fantasia e do humor.

 O melhor exemplo disso é a paródia que ele fez da Primeira Missa, de Victor Meirelles, da qual estão ausentes a floresta, os montes e o mar que, no quadro original, são a própria afirmação do Brasil primitivo e autêntico. Glauco parece situar os personagens num espaço vazio, como a sublinhar a irrealidade da cena e sua falta de ligação com o país de verdade. Pode-se entender também que, como a paródia não deixa de ser obra pictórica de Glauco e nela há personagens atuais por ele introduzidos, a eliminação do fundo – do ambiente real – refletiria uma atitude inconsciente do artista com respeito ao país de então, submetido aos militares: ele o dá como não-existente. Não obstante, sendo essa ou outra a razão do uso do fundo branco naquela fase de Glauco, a verdade é que esse fundo se tornou um elemento estilítico, parte inerente de sua linguagem pictórica na época. Não resta dúvida, aliás, de que, qualquer que seja a explicação lógica ou psicológica que se adote, o fundo branco indica a intenção de livrar as figuras e as cenas do condicionamento realista que o cenário (paisagem, rua, interior de casa etc.) impõe. A ausência do fundo real acentua, ao mesmo tempo, o caráter alegórico da maioria dessas composições, permitindo a junção, num mesmo espaço, das figuras mais díspares.

 Essa retomada da pintura figurativa, por Glauco Rodrigues, inserindo-a numa temática brasileira, nacional, atende à tendência tropicalista, em voga naqueles anos. Sua postura é gozadora e carnavalizante, como se observará comparando a sua Primeira Missa com a de Cândido Portinari, pintada em 1948. Também neste caso, o modelo é o quadro de Victor Meireles e mais uma vez o altar com os padres é o único elemento tomado de empréstimo ao quadro original; da paisagem, a parte preservada são os morros, mas com outro desenho e outras proporções. Como na paródia de Glauco, também na versão portinariana a floresta é eliminada e, de maneira sumária, do mesmo modo que os índios. Se Glauco ainda mantém alguns deles – alguns como índios mesmos e outros como brancos fantasiados de índios –, Portinari é implacável: a missa é assistida apenas pelos portugueses que o fazem numa atmosfera de contrição e dramaticidade, que nada tem a ver com o espírito de religiosidade natural do quadro de Meireles e muito menos com a irreverência de Glauco. A afinidade maior da obra de Portinari com a de Victor Meireles está na profunda convicção de ambos de que fundam, com sua pintura, a verdade histórica. Já a missa de Glauco, ao contrário, nos passa leveza, improviso e inteira despretensão quanto à abordagem do tema, que não é tratado como verdade histórica e, sim, como produto de uma retórica nacionalista que não deve ser levada a sério.

 Essas considerações sumárias sobre a pintura de Glauco Rodrigues indicam, a par de suas raras qualidades de mestre do desenho e da cor, a posição muito especial, muito própria e original que sua obra ocupa na história da arte brasileira contemporânea.