Quem visitar a mostra Pinturas da Floresta, dos índios ticunas, que o Centro Cultural do Banco do Brasil, do Rio, está expondo, certamente será tocado pelo encanto daquelas obras plenas de fantasia, riqueza gráfica e beleza cromática. A impressão que se tem, ao vê-las, é de que a arte de pintar acabou de nascer e ali apresenta-se com todo o vigor e o esplendor. Quem pensaria, diante de tanta criatividade e alegria de pintar, que a pintura acabou? Ninguém, certamente.
E se a alguém como eu, que vivo a refletir sobre as questões da arte contemporânea, acode essa pergunta, certamente responderá, como respondi a mim mesmo: “Se a pintura acabou, não foi para os ticunas; foi para nós, urbanos, imbuídos dos problemas de nossa civilização. Para eles, a pintura mal começou” .
E o importante desta reflexão surgida ali, de repente, é que ela deixa clara a relatividade das opções que fazem os artistas urbanos de hoje, herdeiros de uma tradição moderna que começou com o Cubismo, no despontar do século 20, e se desdobrou em dezenas ou centenas de tendências experimentais. Na origem dessas experiências, estava o questionamento que, de um lado negou a fantasia em favor da racionalidade e, de outro, negou a linguagem figurativa em função da autonomia da pintura, deixaria de se referir ao mundo exterior.
Não cabe aqui discutir os problemas envolvidos nestes questionamentos; o que importa é observar que a pintura dos ticunas, concebida no fundo da floresta amazônica, num universo cultural habitado de seres mágicos, não reflete nenhuma dúvida com relação a sua validez. Pelo contrário, os artistas ticunas encontram nela o instrumento incomparável que lhes permite expressar o mistério e a maravilha da floresta em que vivem juntamente com seus pássaros, seus peixes, cotias, jacarés e tatus... Isto sem falar nos seres invisíveis – o yawaré, o wüwürü– que se tornam visíveis graças à arte da pintura e ao talento daqueles artistas.
Os temas dos guaches expostos no CCBB são todos derivados da experiência de vida e da cultura desses habitantes da floresta, como o igapó, a piracema, o jacaré-preto, yawaré ou o wüwürü. E tudo transfigurado, iluminado de cores intensas, surpreendentemente harmonizadas. Todos os trabalhos estão povoados de árvores e plantas coloridas (com troncos e galhos azuis ou vermelhos), de flores e frutos, águas cor-de-rosa ou verdes, sem falar nos peixes das mais inesperadas formas e cores, tudo tocado de inesperada originalidade e ingênua fantasia, como, por exemplo, o casal de jacarés-pretos, enormes, com seus filhotes minúsculos: a concepção deste guache, dividido em faixas horizontais, integra as figuras dos répteis numa composição simétrica que, por assim dizer, os “abstratiza” e lhes imprime um caráter de seres sonhados. Cumpre assinalar, a propósito, que essa ambivalência de sonho e realidade, impregna todos os seres representados nas obras da presente exposição.
Não menos surpreendente é a cobra-grande (yawaré), em meio a peixes e tartarugas. O “dono do buritizal” (wüwürü), caminha como um fantasma transparente entre os troncos dos buritis, como se atravessasse uma floresta encantada, de rara e delicada beleza, aliás, bem adequada àquele ente encantado que ataca as pessoas fazendo-lhes cócegas até que elas morram – morram de rir, literalmente!
Igualmente fascinante é o guache que retrata a piracema que, como se sabe, designa o período de reprodução dos peixes, quando eles sobem o rio, contra a corrente, para se reproduzirem em suas cabeceiras. Os trabalhos que tratam desse tema apresentam traços muito especiais, se comparados aos demais guaches expostos: é que, neles, coexistem a preocupação com o realismo no retratar dos peixes e uma espécie de surrealismo quanto às suas proporções, tanto no que se refere à relação entre eles como em relação ao rio em que nadam. Certamente, para expressar a magnitude do fenômeno que arrasta os peixes em direção às nascentes dos rios, na piracema, o artista consegue juntar, num guache de pequenas dimensões, mais de 50 espécimes diferentes, alguns sem dúvida inventados.
Mas a esta altura do comentário, devemos levar em conta um dado que, embora óbvio, passa-nos despercebido: é que a pintura a guache não pertence à tradição cultural ticuna, ou seja, os ticunas a receberam do branco, da civilização urbana. Valendo-se de outros meios, os índios naturalmente sempre buscaram expressar (ou inventar) sua visão mágica do mundo. Não obstante, ao se apoderarem da linguagem pictórica “branca”, ganharam um novo instrumento não apenas de expressão, mas também de invenção de seu mundo e de si mesmos.
Chamo a atenção do leitor para este aspecto da questão, a fim de sublinhar o fato de que, através das linguagens artísticas, não apenas expressamos, como também inventamos – ou reinventamos – o mundo em que vivemos, mais cultural que natural, mesmo quando se trata de homens que vivem tão perto da natureza como os índios ticunas. Essa reinvenção da realidade pelo homem, não apenas responde a condições concretas e necessidades subjetivas, como depende dos meios de que ele dispõe para efetivá-la. Não resta dúvida, portanto, de que, se os ticunas não dispusessem do guache nunca teriam tornado perceptível, para si mesmos e para nós, a visão mágica da floresta tal qual esta exposição nos oferece.