Fonte: Revista Multicultural

 Quando os defensores da arte conceitual dizem que Picasso e Cézanne também foram criticados, estão usando um argumento irrespondível que é na verdade um sofisma

 

 Recentemente, um jornal carioca publicou uma enquete sobre a arte conceitual, auto-intitulada de "vanguarda". A motivação para este debate foi a abertura de uma exposição de arte brasileira contemporânea no MAM do Rio. Nesta exposição, muito criticada particularmente por alguns visitantes, repetiu-se o cansado repertório de "instalações" e "objetos", que necessitam de textos explicativos para justificar sua suposta condição de obra-de-arte.

 Este tipo de debate, se pode despertar a atenção dos leitores para a situação da arte de hoje no Brasil, em pouco ou nada contribui para o esclarecimento desta situação. É que o repórter tem que reduzir as opiniões dos debatedores a algumas poucas linhas que nem sempre refletem o pensamento de quem opinou.

 Este foi o meu caso, como certamente o dos demais participantes do debate. Minha opinião limitou-se à afirmação de que "não tem sentido fazer uma arte que não se comunica com ninguém". A resposta dos defensores da arte conceitual foi a de sempre, ou seja, "que também Cézanne e Picasso, hoje mestres consagrados, tiveram suas obras contestadas pelo público e pela crítica, antes de serem reconhecidos e consagrados".

 Aparentemente, este é um argumento irrespondível, tanto mais porque desqualifica os críticos da arte conceitual, equiparando-os aos antigos adversários da vanguarda em seus começos. Não obstante, quando devidamente examinado, o argumento se mostra um sofisma.

 Senão, vejamos. É verdade que muita gente boa, inclusive críticos de arte, reagiu negativamente ao impacto de obras como Les Grandes Baigneuses (1900-1905), de Paul Cézanne, e Les Demoiselles d’Avignon (1906-1907), de Pablo Picasso. Isto não significa, porém, que toda vez que a crítica ou o público nega valor artístico a esta ou aquela obra, esteja repetindo o equívoco dos que rejeitaram obras de Cézanne ou Picasso. A aceitação de semelhante hipótese resultaria na pura e simples anulação de toda e qualquer opinião crítica.

 Aliás, este erro de julgamento em relação a Cézanne e aos impressionistas em geral tornou-se um estigma que marcou a crítica moderna e, de certo modo, contribuiu para a subestimação de todo juízo de valor na área artística, durante o século 20. Não esqueço a conversa que tive, em 1959, com o crítico alemão Georg Schmidt, a respeito da diarréia tachista que naquela época inundava as bienais, os museus e as galerias de arte, transformando a pintura numa espécie de esperanto de uma só palavra. Ele, em face de uma pergunta minha, respondeu que o papel da crítica era aceitar o que os artistas faziam. Foi em conseqüência desse tipo de atitude que o crítico norte-americano John Canaday afirmou, naquela época, que se um artista espremesse uma bisnaga de tinta no nariz de um crítico, ele diria que aquilo era uma obra de arte...

 Este é um dos pontos, mas há um outro não menos ponderável e que, de algum modo, se não justifica, explica certas reações críticas contrárias às obras inovadoras daqueles dois mestres da arte moderna. Trata-se do caráter inegavelmente revolucionário daquelas obras. Elas representaram, naquele momento, uma efetiva ruptura com as formas e valores estabelecidos e apontavam para o desconhecido. Que significavam? Que caminho propunham?

 Atentemos para o caso de Cézanne, que surge na onda impressionista e tenta criar uma nova linguagem pictórica capaz de juntar o fluir e a permanência, o movimento e a estrutura estável. O mestre de Aix lidava com contradições antagônicas que procurava superar numa alquimia que, segundo suas palavras, "muda a água em vinho, o mundo em pintura". Semelhante audácia teria certamente que chocar a maioria, não só do público, como dos críticos e artistas.

 Picasso, a partir da revolução cézaneanna, deu o passo decisivo que rompe a relação secular entre a pintura e a realidade objetiva. Ele iniciou a ruptura que inverte a postura tradicional do pintor, mesmo a de Cézanne: o pintor, agora, não partirá da natureza, mas da tela em branco; a pintura, então, deixa de apoiar-se nos objetos reais com que se compunham os quadros e passa a inventar os objetos que os compunham. Este terremoto que mudou o curso da arte teria, naturalmente, que chocar as pessoas.

 Mas quem, hoje, no Brasil, realiza obras revolucionárias, que signifiquem ruptura com o passado e abertura para o futuro? A arte conceitual de hoje, como se sabe, apenas repete tediosamente o que já foi feito pelos dadaístas e seus seguidores norte-americanos dos anos 60 ou as propostas de Lygia Clark e Hélio Oiticica. Ninguém se choca com essas imitações e repetições. A reação das pessoas e de alguns críticos não tem nada a ver com a do início do século passado.

 Ninguém está chocado ou perplexo, mas apenas irritado com a realização fortuita, sem qualquer exigência ou rigor, com a falta de criatividade e seriedade de muitos artistas dessa tendência. A reação das pessoas, na sua maioria, é de desinteresse, quando não de galhofa, ao se sentirem logradas por exposições vazias de sentido que lhes são impostas por instituições culturais e curadores.

 Deve-se levar em conta que as primeiras instalações e performances datam dos anos 20 e 30, sem falar nas boutades de Marcel Duchamp, que começam em 1917. Algumas experiências de vanguarda, surgidas mais tarde, justificam-se porque acrescentaram alguma coisa ao que se fizera antes, como é o caso, por exemplo, do neoconcretismo brasileiro que, no entanto, na sua forma mais radical, logo se esgotou, conduzindo à desintegração da linguagem artística. Isto não o invalida, mas tampouco justifica ainda imitá-lo.

 Resta ainda um aspecto a ser examinado. Quando esses vanguardistas com prazo vencido lançam mão do argumento que mencionamos no começo deste artigo, comparando-se imodestamente aos grandes inovadores da arte, adotam uma postura que se tornou comum no meio artístico desde que a vanguarda se impôs como o valor atual da arte: a postura de que todo artista é um novo Cézanne ou novo Picasso, isto é, um gênio. Mas nós sabemos que os gênios são raros e as revoluções também.