Fonte: Revista Continente Multicultural

 

Sou de longa data um admirador da arte de Francisco Brennand, sobre a qual tenho refletido e volto a fazê-lo, agora, diante do catálogo de sua mostra recente no Museu Oscar Niemeyer de Curitiba. Salta à vista a diferença de suas criações cerâmico-escultóricas, com respeito às obras de outros artistas contemporâneos, daqui e lá de fora. E até certo ponto, esta diferença envolve a própria cidade do Recife, que também se distingue no contexto nacional, como núcleo de vida cultural e artística. Em que pese às manifestações de arte conceitual – que se encontra por toda parte –, o universo cultural da capital pernambucana é peculiar.

 Esta afirmação tem a ver com o fato de que, no meu entender, não houvesse este universo cultural específico, certamente não teria surgido a personalidade artística de Brennand com as características específicas que o distinguem.

Convencido que estou de que o homem é uma invenção de si mesmo, ser cultural que habita o mundo que ele próprio criou, não pretenderia afirmar que Brennand é fruto do Recife, mas, sim, que, dialeticamente, um influísse sobre o outro, porque, depois deste artista e de sua obra, a cidade que o tornou possível tornou-se um pouco outra por causa dele, pois assim se faz a história humana, que cada um inventa ao inventar-se.

Dentro deste enfoque, sou levado ainda assim a me perguntar que relações tem a obra de Brennand com a tradição escultórica brasileira, e vejo que são escassas. Aliás, nem sei se cabe falar de tradição a propósito desta sucessão de estilos importados da Europa e que aqui ganharam um tom próprio, apesar da falta de continuidade: pulamos do barroco para o neoclássico, deste para a modernidade que redescobre o Brasil primitivo em busca de autenticidade. Mas nos anos 50 dá-se a ruptura com a arte dita modernista na erupção do concretismo e em seguida do neoconcretismo, que leva a conseqüências últimas as propostas implícitas na vanguarda construtiva européia. Cabe então perguntar: que tem Brennand com toda esta história? Muito pouco, ainda que, no fundo, a busca do arcaico e do pré-lógico – que está na base de sua expressão – seja um dos componentes do processo artístico do século 20.

 Acredito que o fulcro de toda criação artística é a personalidade, muito embora não surja ela do vazio, mas, sim, do contexto social como sintetizadora original de elementos e valores coletivos. Mas, se a personalidade fosse apenas a expressão mecânica e inevitável daqueles elementos, dificilmente poderia atuar como fator de mudanças e criações originais. De fato, a personalidade – conforme o menor ou maior grau de originalidade que possua, além da criatividade, impulso visionário etc. – se inventa a partir da realidade em que está surgindo e a modifica na medida mesma em que se inventa e a reinventa. Impossível dizer como surgem tais personalidades, quais fatores determinam seu surgimento que é, segundo creio, aleatório, mais perto do princípio de incerteza da física quântica que das relações de causa e efeito da física newtoniana.

 Francisco Brennand é exemplo de uma personalidade criadora complexa e ambiciosa que, ao contrário de outros escultores e pintores, não se satisfaz com a realização de peças isoladas que, se no final configuram um conjunto, uma “obra”, raramente alcançam a grandeza e a monumentalidade que encontramos no complexo arquitetônico cerâmico escultórico da Várzea, antigas ruínas de Cerâmica São João.

 Coerente com a teoria de que o homem se inventa e inventa seu mundo, creio que a obra que ele cria não seria inevitavelmente criada nem exatamente aquela que ele criou: poderia não ter sido feita e poderia ter sido feita diferente; mas jamais por outro. Assim, o conjunto da Várzea só existe porque ali Brennand encontrou as ruínas da fábrica de cerâmica de seu pai que lhe inspiraram a realização de um templo da arte. Não fora isto e a obra de Brennand teria sido outra, mas não o foi porque ele era quem era: filho de um fabricante de cerâmica, herdeiro de uma fábrica falida, mas, sobretudo, uma personalidade criadora de alto vôo. Se em vez de Francisco Brennand, o herdeiro das ruínas fosse Josef Beuys, este possivelmente, arraigado a seu niilismo de ex-combatente da Luftwaf, teria arruinado ainda mais as ruínas para mostrar que a vida e a arte de nada valem. Já a Brennand, aquelas ruínas inspiraram a criação de uma gigantesca metáfora, imitação e paródia dos sagrados templos erguidos por finadas civilizações. Uma interpretação irreverente e violentadora do sagrado, desmistificadora, uma vez que a imitação do sagrado é a sua negação. Leda cruza as pernas obscenamente como uma depravada. Diana é uma fêmea de eróticos seios, deusas e deuses como Mercúrio, Palas Atenea e Netuno misturam-se a ovos de serpentes e serpentes, nádegas e falos e aves fantasmais. De fato, a impressão que dá é que Brennand se valeu das ruínas para ali construir um cenário onírico onde tudo é possível.

Este é um aspecto; o outro diz respeito às obras em si mesmas, o que significam na sua rudeza e primitividade aparentes, e na sua indefectível identificação com os ícones, símbolos e personagens de uma realidade em que se misturam o mágico e o erótico. Essas obras, de insondáveis significados, são certamente produto de uma personalidade em que, como no artista do paleolítico, imagem e realidade se confundem e para quem a imagem funda uma nova realidade. Neste espaço povoado de personagens da mitologia e da história, frutos de pulsões e aspirações inconfessáveis, circula a elétrica energia do artista reinventor de mitos.