Matisse introduz em sua práxis o conflito entre disciplina e liberdade, desenho e cor
Dada a relevância que ganharam determinados movimentos de vanguarda na arte do século 20, habituamo-nos todos a traçar o curso do processo artístico daquele período a partir de algumas referências fundamentais, como a pintura de Paul Cézanne, o Cubismo, o Futurismo, o Expressionismo, o Dadaísmo, o Suprematismo... Estes movimentos, por suas propostas e obras, determinaram o desdobramento das experiências que desaguaram nas tendências predominantes do século passado. Não obstante, essa leitura, ainda que pertinente, conduz à subestimação ou desconhecimento de outros tantos meandros descritos pela experiência moderna, dos quais derivaram obras de indiscutível relevância, como a de Henri Matisse, por exemplo.
Essas considerações me vêm à mente no momento em que releio uma carta do pintor, datada de 14 de fevereiro de 1948 e dirigida a Henry Clifford, então diretor do Museu de Arte da Filadélfia, antes da inauguração de uma grande exposição sua naquele museu. Trata-se de um documento de especial interesse por duas razões, pelo menos: primeiro porque revela a visão que o artista tinha de seu próprio trabalho e, segundo, porque põe sobre a mesa uma questão essencial para a compreensão da experiência do artista moderno, qual seja a contradição entre o domínio técnico e o gesto criador espontâneo. Pode ser que com ela já lidassem, antes, os grandes mestres da pintura, mas acredito que, na época moderna, é que ela se torna uma questão fundamental. E Matisse a encarna particularmente.
A mensagem explícita da carta é a preocupação do artista com a influência “mais ou menos infeliz” que sua pintura poderia ter sobre os jovens pintores que viessem a visitar a referida exposição. “Como interpretarão eles a impressão de aparente facilidade que lhes produzirá uma visão geral rápida, e até mesmo superficial, de minhas pinturas e desenhos?” indaga ele, para em seguida tocar no núcleo do problema: “Sempre tentei ocultar meus esforços, sempre desejei que minhas obras tivessem a leveza e a alegria da primavera, que nunca nos permite suspeitar do trabalho que custou”. Pois essa “leveza”, conseguida à custa de enorme disciplina intelectual e domínio técnico, oferecia o risco de levar os jovens artistas a supor que, para fazer uma obra de arte, bastaria deixar a mão correr solta.
Talvez não tanto para livrar os jovens de um equívoco, mas também o público e a crítica, Matisse faz questão de referir-se ao trabalho penoso e indispensável que antecede ao desabrochar da obra: “se o artista não soube preparar o seu período de floração, mediante um trabalho que mostra pouca semelhança com o resultado final, não terá muito futuro pela frente”.
Talvez nenhum outro pintor tenha vivido tão intensamente o conflito implícito na realização de uma obra que preservasse o frescor da origem sem no entanto perder a força interior que lhe empresta densidade. E isso se deve, se não me equivoco, à história pictórica desse artista que contrariamente a Picasso ou Braque, não se guiou pela lição cezanniana e, sim, por mestres de outra vertente impressionista, como Seurat e Signac. E essa linha de desenvolvimento da linguagem pictórica, deixada de lado, é que o conduziu à busca da pintura como expressão puramente cromática e, conseqüentemente, mais sensorial, mais sensual e intuitiva que a de Cézanne e a dos cubistas.
Ao substituir a experiência da cor percebida fora do ateliê, ao ar livre, pela alquimia da cor pura baseada na teoria dos contrastes simultâneos (Chevreul), Seurat abre caminho para a exploração da cor como expressão autônoma, o que seria tentado pelos fauves e entre eles por Matisse. Este é um caminho oposto ao de Picasso e Braque que cubificaram as figuras e reduziram a cor de seus quadros a terras e cinzas. Ao descobrir a cor como expressão em si mesma, Matisse introduz em sua práxis o conflito entre disciplina e liberdade, desenho e cor. Por isso mesmo, cita em sua carta a exclamação de Toulouse-Lautrec: “Finalmente já não sei desenhar”.
A questão implícita nessa frase está no centro da problemática da arte moderna, nascida da rejeição aos princípios acadêmicos, ou seja, da arte como resultado da aplicação de princípios e normas; ela seria, então, o resultado de uma invenção do artista no ato mesmo de pintar, da necessidade de ir mais fundo na busca da expressão essencial. Mas o próprio ato de pintar gera um saber que vai se tornando regra para o pintor e de novo tolhendo-lhe a espontaneidade, a capacidade de ir à fonte original, primeira. Por outro lado, rejeitar todo o saber-fazer pode dar ao espectador do quadro a impressão de facilidade, que é o temor expresso por Matisse em sua carta. A lição fundamental que ele nos passa é a de que, em lugar de macetes e normas, a sabedoria do artista consiste em educar-se a si mesmo “com pureza e sem mentir a si mesmo”. Por igual motivo, Oswald Goeldi, mestre da gravura brasileira, costumava dizer: “Não sei gravar”.