O catálogo da exposição Iberê Camargo: Diante da Pintura – apresentada na Pinacoteca de São Paulo – é um trabalho louvável da Fundação Iberê Camargo, não só por sua qualidade gráfica como pela síntese que nos oferece da vasta obra do artista.
O texto do catálogo é de autoria do professor e crítico de arte Paulo Venâncio Filho, curador da referida mostra, que mais tarde poderá ser vista no Paço Imperial do Rio de Janeiro, no Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães, no Recife, e no Museu de Arte Moderna da Bahia, em Salvador.
O texto crítico de Paulo Venâncio Filho preocupa-se menos em situar artística e historicamente a obra de Iberê do que em nos pôr diante de sua complexidade estética e existencial. Não obstante, ele nos conduz dos quadros iniciais do pintor (anos 40) até os momentos finais desta experiência pictórica que marcou definitivamente a arte brasileira. Faz-nos refletir sobre as etapas intermediárias, sem o que seria praticamente impossível situar a obra do artista no conjunto de nossa arte moderna. Fica evidente como, já nas paisagens do começo de sua pintura, manifesta-se a tendência expressionista, que é um dos traços característicos desse pintor, e que atingirá o máximo de exacerbação nos derradeiros quadros pintados por ele.
Um outro aspecto, apontado pelo crítico, é a ausência da figura humana em quase toda a obra do artista e de modo especial nas paisagens urbanas do Rio de Janeiro, onde essa ausência chama particularmente a atenção. Com mais razão, não há figura humana nas fases posteriores – das naturezas-mortas morandianas dos anos 50 – e na dos “carretéis”, dos “núcleos” e dos “vórtices”, quando a sua linguagem figurativa atinge alto grau de abstração e quase se dissolve para sempre na pasta furiosa em que o pintor precipita a pintura. A figura humana só vai aparecer nas telas dos anos 80, após a tragédia inesperada que mudou o rumo de sua vida.
A ausência (e, posteriormente, a presença da figura humana na obra de Iberê Camargo), embora adquira um significado muito particular, deve ser vista como um traço típico de determinada linha artística moderna – exatamente a que passa pelo Cubismo e se compraz em construir quadros com objetos inanimados, quase sempre naturezas-mortas. Esta linha que, em alguns casos, conduziu à abstração geométrica e à arte concreta, orientou-se também na direção da temática metafísica ou ontológica. Em Iberê, um fator subjetivo e emocional – o carretel da infância – reintroduz a questão pessoal e biográfica num discurso que se queria impessoal, abstratizante. Talvez por isso, tenha sido levado a travar com a pintura uma luta tão dramática, em que o objeto se perde na pasta fervilhante da memória para, depois, dela ressurgir mudada em gemas coruscantes, como fragmentos de emoção cristalizados.
Neste sentido, enquanto aventura pictórico-linguística, a obra de Iberê parecia concluir-se no final dos anos 70, quando sobrevém o fato trágico que, juntamente com o câncer, devolve-o à dura realidade do indivíduo sujeito ao erro e à morte.
A última etapa da obra de Iberê Camargo – com suas figuras fantasmáticas – desborda a questão estética. Se é certo que, como pintura, ela é elétrica tessitura de uma linguagem levada a seus limites – a tal ponto que já não se importa em ser arte- e por isso mesmo, como puro improviso sábio, o é e só é – ao mesmo tempo, como na fase negra de Goya, o que o artista deseja é, mais que tudo, gritar sua revolta, seu inconformismo diante da falta de sentido da existência humana. Mesmo porque, este sentido, só somos capazes de inventá-lo quando movidos pela felicidade ou pela esperança.