Algumas das maravilhas da arte universal colocam sérias dúvidas quanto ao dogma da privatização da cultura
A empresa pública é boa, mas a privada é muito melhor. Eis a máxima dos ideólogos da chamada Terceira Via, o remédio para todos os males da sociedade global. O modelo público de financiamento da cultura jamais esteve tão ameaçado. Depois da privatização dos serviços de infra-estrutura, sonha-se com a educação apenas como negócio. Logo chegará a vez do sistema público de cultura: arte, museus, monumentos, tudo será competentemente administrado pelas elites esclarecidas e empresários conscientes de seu papel de vanguarda cultural.
Em vez de prédios históricos em estado precário administrados por um número exagerado de funcionários públicos, em vez de museus sujos, sem recursos para promoções e aquisições e considerados apenas um cabide a mais de empregos pelos inumeráveis políticos corrutos do Brasil, a privatização será a solução. Afinal, os nossos cinemas não dão tanto lucro. Por que não incutir o interesse por outras formas de cultura na população? Quem se oporia a um empresário com uma visão aberta a ponto de comprar um forte antigo, um bairro histórico, ou uma casa grande e mantê-los como um importante centro turístico gerando lucro e impostos para o Estado? Por que não fazer da História uma empresa?
Os argumentos podem ser os mais convincentes, contudo a realidade pouco segue a lógica. Algumas das maravilhas da arte universal colocam sérias dúvidas quanto ao dogma da privatização da cultura. Primeiro, o Castelo Hever, em Kent, na Inglaterra, onde já estive várias vezes nos últimos onze anos e presenciei a mudança de sua gestão na direção a uma postura mais privatizada.
O castelo sempre foi privado. Até meados do século 20 foi literalmente habitação de uma nobre família inglesa e manteve seu lado histórico semi-intacto. Ali, séculos atrás, Henrique VIII conheceu e se apaixonou por Ana Bolena e se passaram fatos cruciais da vida política inglesa. Dentro de suas modestas muralhas encontra-se o mais autêntico ambiente do início do renascimento inglês. Lindos ainda são o gramado e os jardins externos, de inspiração italiana, e pontuados por belos monumentos e um recém-construído jardim de flores e ervas que leva na direção de um teatro ao ar livre, onde no verão se podem ver espetáculos e música após um agradável piquenique na relva. O palco tem como pano de fundo uma bela lagoa margeada por pequena floresta, que nos fornece ainda uma estimulante caminhada.
A última vez que o visitei percebi que a família americana, que atualmente é a proprietária, ampliou a coleção de suas fotos nos quartos do castelo. São fotos de seus antepassados recentes, dos atuais bilionários que estão à frente dos negócios, de encontros de membros da família com políticos, uma série de lembranças que teriam importância em um museu dedicado à família, mas que naquele castelo ganham um significado negativo: de que se quer criar uma identificação mercadológica entre os atuais proprietários e o passado histórico inglês. É inevitável a idéia de usurpação da memória histórica do castelo e sua gradual associação à história da família proprietária. Imagine um destes milionários comprando o Cristo Redentor e fazendo-o a logomarca de sua empresa, ou criando nas suas entranhas um museu dedicado aos seus avós.
Se Paris fosse engolida pelo fogo e restasse o Palácio Garnier e o Louvre, toda a beleza poderia ainda ser reconstruída. Retrato da megalomania de Napoleão, a casa de ópera no coração da cidade não é apenas o mais belo prédio do mundo. Ela, como o Louvre e muitos outros espaços culturais na França, nos oferece um segundo exemplo.
Mostra como deve ser a adequada combinação entre o bem público e a sua função de gerar renda. Ao lado do cuidado com a manutenção da História, existe a preocupação com o compromisso e a geração de renda. Nada é de graça. Paga-se para entrar, embora menos que nos museus em Londres. Na França, os espaços continuam públicos e administrados cada vez mais como privados. A necessidade de se autofinanciar está ainda combinada com o impacto que os monumentos exercem no fluxo turístico e na sobrevivência econômica da cidade. Um dia em cada mês do ano, o Museu do Louvre e todos os outros são gratuitos. Todos continuam com o direito à cultura. Pelo menos uma vez ao mês.
No Brasil vivemos num paradoxo. Embora a manutenção da cultura seja considerada pública; como tudo que chamamos de público, neste país, ela é de fato privada. Onde a diferença entre o privado das elites e o público é pouco relevante. Incontáveis são os monumentos destruídos, contrabandeados, corrompidos por indivíduos que se aproveitam para literalmente se perpetuarem à frente de instituições mortas, apropriarem-se dos objetos ou simplesmente destruí-los, criarem fundações para promover empresas às custas dos incentivos culturais. Longe dos modelos francês e inglês, nossa máxima é ainda modernizar, sem mudar.