Fonte: Revista Continente Multicultural

 

Recente exposição de Milton Dacosta na Galeria Ipanema, no Rio, levou-me à seguinte constatação: eis aqui um pintor-pintor, ou seja, um pintor que não lança mão de nenhum outro recurso para construir seus quadros, a não ser a própria pintura, a expressão inerente à natureza mesma do plano, da linha, da cor, da matéria pictórica.

 Sei que essa afirmação implica certa simplificação, uma vez que Dacosta, ao longo de sua carreira, passou por várias etapas, desde certo expressionismo da primeira fase figurativa, seguindo-se aquela que Flávio De Aquino definiu como “cubismo lírico” até a etapa “mondriânica” e, no final, retornou à figura já agora marcada por certo refinado barroquismo. Sem dúvida, a noção de purismo pictórico, a que me referi, não se ajusta a todas essas fases; não obstante, se há um traço que define o que tem de específico a obra desse artista é, certamente, o despojamento de elementos outros – “expressionistas”, diria eu – em função da expressão essencialmente pictórica.

 Pode-se dizer que esse processo se inicia nos anos 40, quando Dacosta substitui a figura de origem expressionista pela figura estilizada, geometrizada, que se afasta da realidade natural do realismo e da subjetividade da fase anterior. A partir de então, ele substitui a noção de pintura como expressão pela de pintura como construção. É esse caminho que o levará às “construções”, que realiza a partir da década de 50.

Antes de chegar às “construções”, ele passa pela etapa das figuras de mulher e menina, liricamente estilizadas e onde a linha reta dá lugar à linha melódica, e o plano árido, a planos que se interpenetram suavemente. Talvez seja esta a fase áurea da obra de Milton Dacosta, quando ele atinge a mestria do desenho figurativo estilizado dentro de uma linguagem rica de conotações pictóricas, de sutil equilíbrio entre racionalidade e lirismo, regra e emoção, para usar a expressão de Georges Braque.

Guardo na memória algumas dessas figuras que são verdadeiras invenções – criações, no pleno sentido da palavra – uma vez que não se referem a nenhuma pessoa em particular, nem mesmo guardam a referência imediata à forma humana natural: aquelas mulheres e meninas, pintadas por Milton Dacosta, só existem ali em seus quadros, são pura e simplesmente “pintura”.

 Segue-se a etapa das cabeças (ou “cabeçudas”), quando a geometrização da figura se sobrepõe ao desenho inventivo e solto da fase anterior. A geometrização rígida das “cabeças” gera, no meu entender, um esquematismo que, de certo modo, compromete a harmonia gráfica da obra. Algumas dessas figuras ele as intitulava de Alexandres, em referência a seu filho recém-nascido e de quem fizera um retrato dentro dessa estilização. Havia nessa designação certa dose de humor que era, aliás, um traço simpático da personalidade do pintor. A verdade, porém, é que esses Alexandres são o início de um período crítico de sua pintura, em que parece sentir dificuldade de optar entre a figura natural e sua geometrização. Noutras palavras, sente a necessidade de levá-la às últimas conseqüências, mas teme romper definitivamente com a figuração. Pode-se dizer que a fase das “cabeças” constitui um processo crítico de ruptura com a figura, para chegar às construções abstratas, puramente geométricas dos anos 70. Mas antes dessa abstração radical, Dacosta ainda percorre uma etapa, no limite do figurativo, quando realiza uma série de naturezas-mortas, em que o domínio de sua arte de pintor de novo se revela em toda a plenitude: são, em geral, telas acentuadamente horizontais (paralelogrâmicas), onde a composição, obedecendo a essa horizontalidade, adquire uma densidade pictórica incomum. Nessas composições, a bidimensionalidade atua como um fator que sublinha sua natureza puramente pictórica, desligada de quase toda referência às frutas reais, mudadas em arquétipos geométricos. Mais que as frutas das naturezas-mortas de Cézanne, as de Dacosta são meros seres gráfico-pictóricos. E essa distância que as separa do mundo real, em vez de esvaziá-las, intensifica, pela ruptura drástica, o conflito semântico entre a obra e o mundo.

 Tal conflito desaparece nas “construções” da etapa posterior: são pura geometria, sem qualquer alusão ao mundo figurativo: são concepções autônomas, regidas por relações simples de equilíbrio, proporção, ritmo e assimetrias que se compensam no diálogo, que o pintor estrutura, progressivamente, entre as formas e as cores. Essas “construções” erguem-se sobre cada uma delas, sobre um fundo de uma só cor, ora cinza ou azul, ora branco ou vermelho, ora negro ou marrom. Dacosta referia-se a esses fundos, que ocupavam a maior parte das telas, dizendo: “é preciso deixar a cor ser cor”. E acrescentava: “uma cor é um silêncio”. Depois sorria e falava: “Não nos quadros de Picasso. Ele faz muito barulho”.