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Primeiro ele desenha o esboço, depois cria o quadro. Ou, então, o que mais gosta: olha a tela branca e não pensa, liberta a emoção e pinta sem pretender nada, apenas deixando que tudo flua como a música de quem sabe tocar um violino sem partitura. Interpreta a sinfonia da emoção.

Nos anos 1950 não havia muitas oportunidades para ser artista plástico, sobreviver da arte era muito difícil. Arcângelo Ianelli, por exemplo, só vendeu o primeiro quadro depois de 20 anos de trabalho. Passando pela galeria onde expunha um senhor adquiriu certa tela e, ao final da mostra, o artista foi entrega-la e receber o pagamento. Ao chegar à casa do colecionador, descobriu que havia morrido...

Rubens Vaz Ianelli, nasceu em 22 de abril de 1953, filho de Arcangelo e Dirce. Ele pintor, ela dona de casa. Pais responsáveis, desejaram que o filho fosse médico, carreira de sobrevivência mais garantida. Vocacionado e talentoso para a arte, e não apenas pelo DNA familiar, Rubens primeiro optou pela Arquitetura, caminho intermediário entre o sonho e a realidade. Quando bem pequeno, até pensou em ser farmacêutico ao brincar com vidrinhos nos fundos de uma antiga farmácia de manipulação. O envolvimento com a mística das linhas, cores e o brilho da luz marcaram sua infância, definiram seu futuro. Mas, não sem antes deixa-lo experimentar a vida como ela é.
O pai famoso sempre o incentivou para o bem. Por outro lado, talvez irônico excesso de zelo, nunca o ensinou nada de arte. Como o destino tem seus truques, os restos de telas e tintas jogados no lixo por Ianelli deram ao curioso menino a oportunidade de conhecimento artístico. Aluno do tradicional Colégio Dante Alighieri, foi lá que Rubens mostrou as primeiras obras e conquistou os primeiros prêmios.

OS SIGNOS

O verdadeiro ponto de partida para uma sólida carreira está em 1962, quando o pai retorna de viagem ao Peru trazendo cerâmicas e tecidos. Aquelas peças de origem primitiva, inspiradas na arte pré-colombiana, foram impactantes no despertar de seus dons. O menino passou a fazer esculturas em barro e entalhes em madeira, adquiridos por vizinhos e amigos.
Em 1964, quando Ianelli ganhou Prêmio de Viagem no Salão Nacional de Arte Moderna, a família seguiu para a Europa em um navio cargueiro da Lloyd Brasileiro. Rubens obteve conhecimento internacional. Em cada porto do trajeto, visitava museus e galerias. Na cabine transformada em atelier, o pai registrava as imagens da viagem.
Na Europa, alugaram um carro e um trailer e percorreram o continente por dois anos. Rubens descobriu o auge da arte moderna, encantando-se por algumas de suas origens: os italianos Giotto, introdutor da perspectiva na pintura, e Piero Della Francesca, outro inovador que usou a geometria ainda no final da Idade Média. E também conheceu o contemporâneo: Miró, catalão surrealista, e Paul Klee, suíço naturalizado alemão, famoso por seus experimentos usando apenas linha e cor. Nessa época, o menino fez desenhos à caneta e à bico-de-pena.
Tudo isso, na volta ao Brasil, levou Rubens a um estilo próprio e muito especial, que não se subordina às escolas e tendências. Com apurada técnica e plena emoção, o artista ressalta o valor do traço seguro, do uso harmônico da cor e do favorecimento da luz em um conjunto de ações de inédita poética musical em temas ricos de emoção. Consolida-se um excelente desenhista, pintor e escultor em várias técnicas: nanquim, carvão, grafite, pastel, guache, óleo, aquarela, extrato de nogueira, madeira, pedra, metal.

A LINGUAGEM

No final da década de 1960, quando o regime instaurado após o Golpe Militar de 64 recrudesce, Rubens sofre a repressão política e substitui o figurativo pelo geométrico. Começa a expor em salões e a conquistar prêmios. Deixa a faculdade de Arquitetura, ingressa no movimento estudantil de combate à ditadura. No início dos anos 1980, ao mesmo tempo que desenvolve colagens com temática política entende que não há lugar para mais de um Ianelli na arte; e já havia o tio Thomaz... Está instaurado o conflito: como crescer além do pai famoso?
Resolveu estudar Medicina. Formou-se, obteve mestrado em Saúde Pública. Exerceu a profissão ao longos de mais de 20 anos, clinicou junto aos povos indígenas da Amazônia. Viajou toda a América Latina, viveu em países sob conflito revolucionário. Em 2001, o Brasil redemocratizado e homem de boa vontade que é, Rubens superou as vezes nas quais, de maneira míope, ignoraram a qualidade de seu trabalho e o colocaram apenas à sombra do pai.
Da mesma maneira que aprendeu arte sozinho  desde adolescente descobriu no fundo do quintal de casa como montar um chassi, esticar a tela, usar pinceis, tintas e vernizes  também soube retomar seu ofício de artista plástico e alcançar respeito e sucesso com láureas e trabalhos em importantes acervos no Brasil e no exterior. A série Cidades é um dos pontos altos de sua instigante obra. Rubens empreende viagem aos mais longínquos territórios da memória, revelando paisagens com pertinente virtuosidade de metáforas e alegorias.
Há no trabalho do artista um lúdico diálogo entre penumbra e luz, cores claras e escuras, sempre conduzido por um traço que estabelece um fio da vida. Uma visão onírica é latente em sua obra. Pode-se imaginar, perfeitamente, cada habitante dessas cidades e o que pensam, fazem em seus sótãos e porões. Rubens Ianelli é um médico da arte, receita sonhos e propõe saúde intelectual.

Ricardo Viveiros para a Revista Abigraf, em junho de 2012.