O mais consagrado artista plástico brasileiro de todos os tempos, Cândido Portinari, no centenário de seu nascimento, tem a importância resgatada na oportuna releitura de sua vida e obra. A pintura de Portinari é pura realidade nacional, suas telas e painéis denunciam as desigualdades sociais e o horror da violência.

RICARDO VIVEIROS (ABCA)

Segundo dos 12 filhos de Giovanni e Domenica, modestos imigrantes do Vêneto, norte da Itália, Cândido Torquato Portinari nasceu no dia 30 de dezembro de 1903, numa fazenda em Brodósqui, Estado de São Paulo. “Pequenininha, duzentas casas brancas de um andar, no alto de um morro espiando para todos os lugares”, descreve Portinari. Os pais plantavam café, ele brincava naquele pequeno grande mundo de cores e formas marcantes, “lugar arenoso no meio da terra roxa cafeeira. Imenso céu azul circula o areal. Milhares de brancas nuvens viajam”. Observador, o menino Candinho ficava impressionado com os pés dos lavradores: “Pés disformes. Pés que podem contar uma história. Pés semelhantes aos mapas, com montes e vales, vincos como rios”. Pés que, tempos depois, seriam marcas de sua arte e contariam ao mundo a dura realidade brasileira.

Portinari cursou apenas o primário, mas sua infância foi rica em aprendizagem. “Eram belas as manhãs frias, na época da apanha do café, e delicioso o canto dos carros de boi transportando as sacas da colheita. A luz do sol parecia mais forte. Era somente para nós. Sonhávamos sempre, dormindo ou não. À noite, deitávamos na grama ao redor da igreja e, de barriga para cima, ficávamos vendo as estrelas e sonhando. Um perguntava ao outro o que desejava ser — as respostas eram ambiciosas: um desejava ser rei, outro general, aquele dono de circo”. Portinari descobriu sua vocação muito cedo, quase ao acaso. Desenhou um leão numa de suas aulas, foi um sucesso. Não teve mais tranqüilidade, passou a ilustrar capas de provas, cartazes, trabalhos escolares. Tempos depois, chegaram pintores para trabalhar na igreja, e o menino Candinho foi pintar estrelas no fundo do altar. O sonho se tornava realidade.

A TRAJETÓRIA

Portinari, aos 15 anos, vai para o Rio de Janeiro e se matricula na Escola Nacional de Belas-Artes. Três anos depois, vende sua primeira tela “Um baile na roça”. Ano após ano, vai sendo premiado nas edições do “Salão Nacional de Belas-Artes”. Em 1928, conquista o “Prêmio de Viagem ao Estrangeiro”. Segue para a França. Visita Itália, Espanha e Inglaterra. Pinta pouco pesquisa muito. Mergulha em melancolia, saudade de Brodósqui. Portinari refletiu sobre sua pintura. Voltou ao Brasil, distanciou-se da Escola Nacional de Belas-Artes, sobreviveu com trabalhos sob encomenda (o que lhe amargurava), mas, principalmente, buscou aperfeiçoamento artístico.

Em 1931, expõe retratos sob novos critérios: personifica rostos, simplifica volumes, valoriza tons e matizes. Foram diversas e contrastantes as fases de Portinari. Mesmo incluindo-se os discutíveis retratos, sua arte sempre foi maior. No cavalete ou nos murais, sua pintura comprometida com a realidade brasileira, de qualidade, tornou-se exemplo de Modernismo, só comparado à obra de Picasso. O trabalho de Portinari dialetizou a força dos elementos populares, uniu técnica perfeita a um vigoroso estilo, resultando um expressionismo de alta qualidade.

Mas foi um personagem popular de Brodósqui, o “Palaninho”, que mudou a vida e a arte de Portinari. “Bigode empoeirado, ralo e com algumas falhas; e só tem um dente. Usa umas calças brancas feitas de saco de farinha de trigo e ainda se nota o carimbo da marca da farinha. Embaixo, ele amarra as calças com palha de milho para não apanhar lama — não usa botina nos dias de semana. Usa paletó escuro listrado, com uma golinha muito pequena e quatro botões: — três pretos e um branco”, descreve o pintor. Na verdade, o choque cultural com a Europa, levou Portinari de volta às origens.

Estava em Paris, vestia roupas elegantes, freqüentava lugares sofisticados, discutia literatura e, no fundo, sentia-se tal e qual “Palaninho”. Foi no Velho Mundo que o artista descobriu sua missão: “Daqui fiquei vendo melhor a minha terra — fiquei vendo Brodowski como ela é. Aqui não tenho vontade de fazer nada. Vou pintar o Palaninho, vou pintar aquela gente com aquela roupa e aquela cor”. E pintou. Em 1935, em Nova Iorque - EUA, participou da “Exposição Internacional de Arte Moderna” do Carnegie Institute, com a tela “Café”, obtendo menção honrosa. Sua arte conquista espaço na América e no mundo.

 RESGATE

Foram quase cinco mil obras executadas pelo pintor, desde simples desenhos até complexos murais. Portinari está em museus, edifícios públicos, igrejas, monumentos, livros, coleções particulares no Brasil e inúmeros países. Seus afrescos na Biblioteca do Congresso em Washington - EUA e no edifício-sede da Organização das Nações Unidas (ONU), em Nova Iorque – EUA, são considerados marcos referenciais da arte mundial.

Embora filiado ao Partido Comunista, ativista político (chegou a estar exilado no Uruguai), artista respeitado e premiado internacionalmente, Portinari até hoje é criticado por alguns como tendo sido o “pintor oficial” da Revolução de 30 e do Estado Novo, períodos de ditadura das mais repressivas da História do Brasil. O presidente Getúlio Vargas, embora contrário à ideologia do pintor, rendeu-se à qualidade de Portinari e o contratou para trabalhos em edifícios públicos. Mas, como disse o insuspeito escritor Graciliano Ramos, “Portinari era um indisposto a transigências”. Portanto, sua importância ímpar na arte como sua conduta exemplar na vida, não devem ser questionadas.

Cândido Portinari, que morreu em 6 de fevereiro de 1962 vítima de intoxicação pelas tintas que usava, há cerca de 10 anos vem sendo tema de uma série de eventos em todo o País e no Exterior, promovidos pelo seu filho, João Cândido, que trazem aos nossos dias, seu pensamento, sua vida e sua obra. Justiça seja feita ao “Pintor do Brasil.

Afinal, como disse o poeta Carlos Drummond de Andrade: “Foi em Portinari que conseguimos a nossa expressão mais universal, e não apenas pela ressonância, mas pela natureza mesma do seu gênio criador, que ainda que permanecesse ignorado ou negado, nos salvaria para o futuro”.