Da China para o Brasil, e daqui para o mundo, a arte criada com equilíbrio, harmonia e liberdade para transmitir não mais do que o essencial. Arte silenciosa que grita emoção, arte suave e forte como uma âncora.

Com o fim do século XVIII, as manobras estrangeiras para invadir comercialmente a China — incluindo ação estratégica dos ingleses que, em meados dos anos 1800, contrabandearam para lá o ópio indiano —, tornaram-se ainda mais agressivas deixando o país asiático em situação frágil diante dos interesses das potências ocidentais e do Japão. Nos anos 1900 eclodiram por todo o território chinês movimentos de reação à política imperialista dos "inimigos da Pátria".

Han-Chen Fong, ainda bem jovem, foi um dos militantes que defenderam a China durante o fim da Dinastia Qing. Foi com apoio de corajosos estudantes e trabalhadores que, no limiar de um novo século, o partido nacionalista, Kuomintang, tomou o poder prometendo soberania e república. Nesse momento, diante de duvidosos rumos do movimento pelo qual havia arriscado sua vida, Fong afastou-se das armas e voltou aos livros escolares.

Ao se mudar para o Japão, concluiu Engenharia e vislumbrava uma segura carreira profissional. Mas, diante dos rumos tomados com a Segunda Guerra Mundial, sua consciência não lhe permitiu seguir naquele país. Fong voltou a China, indo trabalhar na indústria papeleira, além de escrever e ilustrar livros técnicos. Casou já maduro e teve três filhos. Contraiu grave enfermidade que lhe deixou a mão direita defeituosa. Aos herdeiros, carinhosamente Fong mostrava seus desenhos, alguns de equipamentos navais. E gostava de lhes contar histórias que, à luz pálida e amarelada das lâmpadas, animava com a mão defeituosa criando sombras de animais nas paredes. Para completar o espetáculo, fazia o som imitando mágicas "conversas" entre cães e gatos.

A MARCA

O filho caçula — nascido em 1931 em Tongcheng, província chinesa de Anhui — um dia demonstrou curiosidade por uma âncora. O que era aquilo tão estranho? Fong explicou: "As âncoras têm muita personalidade. São modestas, silenciosas. O fundo do mar é um mundo cruel, e diante de qualquer ameaça da correnteza elas não mudam de posição". Estava determinado o futuro do menino: seria como uma âncora. Ainda mais porque aos 10 anos de idade perdeu o pai que, para época, era um homem moderno, sensível e culto ao despertar e incentivar no garoto o amor pela arte.

Foi com o pai que o artista plástico Fang, nome artístico que adotou mais tarde, desenhou para sua existência uma trajetória baseada em ética, simplicidade e modéstia. Uma carreira produtiva, silenciosa e firme. Sem permitir que as adversidades, contra as quais viu o pai lutar de maneira sempre digna, o fizessem perder o rumo e o deixassem levar pelas correntezas do perigoso mar da vida. Desde a adolescência, conforme lhe sinalizou o pai, buscou aprender que o mundo pode ser recriado em imagens.

Base do trabalho de Fang desde os 11 anos de idade, a arte chinesa embora sob históricos conflitos manteve-se fiel aos seus fundamentos: caligrafia, desenho e suavidade poética. Sempre com a mais pura emoção na busca da verdadeira essência de cada imagem. A importância em revelar o que os olhos da alma podem descobrir muito além do tema a ser retratado. Uma pintura que pode parecer decorativa. Mas, não é. Porque está impregnada de sensibilidade descoberta em cada volume, cor, traço revelado pela luz. Aliás, uma característica muito forte da arte oriental está nas sombras que falam.

A BORBOLETA

Em 1951, com a mãe e um irmão, Fang mudou-se para o Brasil, depois de viver por alguns anos em Suzhou, próximo a Xangai. Foi lá, em 1945, que ele iniciou os estudos de sumi-ê com o mestre Chang-Zenshen. Trata-se de uma técnica de pintura surgida na China no século II da Era Cristã, que harmoniza caligrafia e desenho, monocromática, cuja proposta é transmitir apenas o essencial. Sua realização, sempre em silêncio, exige estudo, prática, concentração e habilidade. Nela o artista transcende o real, passando o imaginário que está em sua alma na elegância do traço.

Quando Fang aportou aqui, outros orientais também já haviam se fixado em terras brasileiras e eram nomes respeitados nas artes plásticas. Não sem antes, como a família dele fez no Paraná, trabalhar na agricultura. Em 1954, já morando em São Paulo, o jovem artista torna-se aluno do japonês Yoshiya Takaoka, com quem aprende pintura. Desse momento em diante, a carreira de Fang só registra conquistas. Seus trabalhos mereceram seguidas exposições individuais e coletivas em importantes museus e galerias, como também prêmios nacionais e internacionais. Fang lecionou na Faculdade de Belas Artes de São Paulo. Foram produzidos dois curtas-metragens sobre sua vida e obra: "Os caminhos de Fang" (1981) e "Chen Kong Fang" (2004).

Fang, um apaixonado por este País, naturalizou-se brasileiro em 1961. Entretanto, por toda a vida manteve-se fiel às origens de seus ancestrais, bem como, honrou a memória de seus amados pais. Dedicado à arte, compartilhava o tempo livre com a esposa Akiko, os três filhos e o tai chi chuan. A pintura de Fang traz a simplicidade, beleza e qualidade técnica da milenar arte oriental, mas, também, um claro toque ocidental que lhe acrescentou o Brasil. Desde a delicadeza do sumi-ê até as cores fortes do tropicalismo no figurativo, passando por uma válida e rápida experiência no abstrato e até retornar às suaves imagens em tons pretos e brancos, o artista sempre foi livre em suas criações. Tão livre que se perguntou um dia: "Será o pintor semelhante a uma pobre borboleta?"

A resposta não foi dada, e nem é necessária. Porque Fang se tornou borboleta ao sair do casulo da vida em novembro de 2012, deixando um rastro de suavidade e beleza. São quadros que podemos admirar nos acervos de museus e em coleções, no Brasil e no mundo, para descobrir que estamos ancorados na liberdade de viver e amar.

Ricardo Viveiros para a "Revista Abigraf", em janeiro de 2013.