Ele foi chargista, desenhista, pintor, muralista. Criou para gravura, tapeçaria e jóias. Exerceu o jornalismo e publicou dois livros. Ele é a maior expressão da arte brasileira comprometida com a realidade do País. Ele não foi um radical obsessivo, mas é apontado como mestre do Modernismo. Ele era apaixonado pela vida, pela alma do povo brasileiro.
Como acontece nos casos de pessoas famosas que, por seus inegáveis méritos, passam de geração em geração ocupando o interesse de toda a sociedade, é muito difícil escrever novidades sobre Di Cavalcanti, artista plástico e escritor. Talvez, fosse interessante dizer que ele se chamava Emiliano. Ou melhor, como nem todos sabem, Emiliano de Albuquerque Mello. Um intelectual cuja imagem transcende a do eterno boêmio, homem simples encantado com a realidade das mulatas sensuais e dos malandros reais do carnaval carioca. Alguém que, na arte, “saboreava” frutas tropicais e “passeava” paisagens suburbanas como ninguém soube, antes ou depois dele, tão bem retratar numa linguagem muito própria, consolidada depois de experimentar influências como as de Picasso, Braque, Rivera.
Emiliano, que quando caricaturista usava o pseudônimo de “Urbano”, ao iniciar a carreira de pintor passou a ser “Di Cavalcanti”. Ele não tinha medo do que era bom. Por isso, viveu e trabalhou intensamente. Cresceu na vida, como pessoa, e no trabalho, como profissional de uma arte sem limites, já que seu talento era múltiplo.
Nascido no Rio de Janeiro em 6 de setembro de 1987, o artista não sabia que na aurora do século XX, o resto do mundo ainda desfrutava uma vida sob confortáveis e seguros valores do passado. Naquele tempo, a religião e o civismo ainda não haviam sofrido as frias transformações causadas pela primeira guerra mundial, pelo surgimento da grande aldeia em que se transformou o planeta com o rádio e a televisão. Tudo isso, sem falar das viagens aéreas que também encurtaram o mundo e o aparecimento da revolução comunista, que mudou conceitos e desafiou a burguesia.
Di Cavalcanti iniciou seu trabalho artístico por volta dos 17 anos, fazendo charges de conteúdo político para a revista Fon-Fon. Sua arte, portanto, tem origens no Brasil. Surge questionando os nossos homens públicos, frente aos problemas do povo. A obra de Di torna-se, pela origem, referencial do clima da época e reflete as influências visuais que atingiam nossos artistas. Era uma fase de muitas transformações. Di, ainda no campo gráfico, faz a capa e as ilustrações para o livro “Ballada do Inforcado” de Oscar Wilde, traduzido e lançado no Brasil. As pranchas usadas no livro foram expostas no “Salão dos Humoristas”, no Rio de Janeiro, e causaram grande interesse pelo jovem artista e seu inovador trabalho. Os desenhos são sombrios, claramente simbolistas. Nota-se a influência do movimento Art-Nouveau que chegava até nós, vindo da Europa.
Di começou a pintar em 1917, suas telas desse período são penumbristas como se pode constatar em algumas obras que se encontram na Pinacoteca do Estado e no Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, ambos na capital paulista. Na tela “O Beijo” (acervo do MAC-USP), já com um tratamento mais colorido, apresenta o início da fase modernista do artista com imagens hipertrofiadas, reduzidas a simples mas expressivos fios. Nesse momento, o Modernismo começava a instigar a intelectualidade brasileira. No entanto, por aqui tudo acontecia num estado bruto da simples e direta procura de liberdade, diferentemente do que se passava na Europa. Lá o mesmo movimento contava com o respaldo das teorias de Nietzsche, Max, Freud, Bergson e outros importantes pensadores.
O MODERNISMO
O Rio de Janeiro, quando à época nele vivia Di Cavalcanti, era um lindo e animado balneário, possuidor de uma riquíssima burguesia que ainda somava alguns nobres remanescentes dos tempos imperiais. Não havia condições para nenhuma ruptura cultural. Já São Paulo, com o aristocrático empresariado obrigado a conviver com os milhares de operários imigrantes, era a cidade que oferecia melhor clima para, em suas terras, ser lançado o Modernismo. Além disso, os intelectuais de maior peso econômico também viviam na “paulicéia desvairada” de Mário de Andrade. O carioca Di previu tudo isso e, em 1921, mudou-se para São Paulo. Antes, porém, expôs a coleção de desenhos “Fantoches da Meia-Noite”, um olhar bem humorado sobre os tipos humanos da Lapa, reduto da boemia na “Cidade Maravilhosa”.
Não foi ao acaso, portanto, na agitada livraria de Jacinto Silva durante exposição de Di Cavalcanti, que Graça Aranha, recém chegado da Europa e trazendo na bagagem muitas novidades, encampou e patrocinou a idéia do artista de realizar a “Semana de Arte Moderna”, que aconteceu em 1922. A bem da verdade, Di já havia sido o responsável direto pelo que se poderia denominar como o “estopim do movimento”, quando em 1917, visitou sua amiga Anita Malfatti e a entusiasmou a expor seus quadros. O que acabou acontecendo no final do mesmo ano, num espaço da Rua Líbero Badaró, no centro da capital paulista. A mostra causou impacto até então sem precedentes, tanto no público quanto na crítica. Estava lançada a semente do Movimento Modernista no Brasil.
Antes mesmo de ir para a Europa, Di já havia evoluído sua arte. Como ele mesmo conta em um de seus livros, sobre esse momento: “Meu modernismo coloria-se do anarquismo cultural brasileiro e, se ainda claudicava, possuía o dom de nascer com os erros, a inexperiência e o lirismo brasileiros”. Essa consciência e um apurado espírito crítico, foram preponderantes para o crescimento interior do artista. Um legítimo animador cultural, Di revelou além de Anita Malfatti, também outros artistas como Victor Brecheret e Osvaldo Goeldi. O artista incentivava os jovens talentos a viajar, conhecer outras terras; isso aconteceu, por exemplo, também com Cícero Dias. Muito importante para a integração dos grupos carioca e paulista no Modernismo, foi a contribuição de Di Cavalcanti. Como o artista transitava com desenvoltura nas duas cidades, representava o canal de comunicação entre os seus participantes.
Di vai para Paris de onde envia suas inspiradas crônicas para o “Correio da Manhã”, entre 1923 e 1925 (depois voltaria nos anos 30). Nesse novo período na França, o artista amadurece ainda mais sua técnica, assimila o cubismo e determina como principal a temática fundamentada no povo brasileiro, com destaque para a figura humana. Aliás, Di nunca aceitou que para ser um modernista deveria abrir-mão dos temas nacionais. Ao contrário, entendeu que deveria trata-los com modernidade. Daí surgiu o compromisso de usar modelos figurais representativos da vida brasileira, numa concepção artística cada vez mais suntuosa. Isso se pode conferir em uma de suas telas mais importantes: “Cinco Moças de Guaratinguetá” (Museu de Arte de São Paulo – MASP).
A presença européia trouxe um novo significado à obra de Di Cavalcanti que, em seu livro de memórias, conta: “Dois acontecimentos marcaram a minha vida: conheci Picasso e assisti às comemorações fúnebres da morte de Lenine”. No Museu Nacional de Arte Moderna, em Paris, está um dos seus belos quadros “Cena Brasileira”, um dos frutos desse seu segundo período no Velho Mundo. Em 1953, Di conquista o prêmio de “Melhor Pintor Nacional”, junto com Alfredo Volpi, na II Bienal de São Paulo. Em 1956, leva o primeiro prêmio da Mostra de Arte Sacra, em Trieste, Itália. Em outubro de 1971, o Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP) realizou uma das mais interessantes retrospectivas da obra do artista.
Di Cavalcanti morreu no Rio de Janeiro, em 26 de outubro de 1976. Suas obras estão nos principais museus do mundo, artista premiado internacionalmente. É o povo brasileiro, em sua essência, mostrado na penumbra ou sob a luz das cores de quem melhor soube retratar sua alma, não apenas sua beleza e sensualidade.