Ele pode ser apenas uma capa, as ilustrações ou todo o projeto de arte de um livro. Pode, também, ser a caricatura de alguma personalidade em jornal ou revista. Pode, ainda, ser um quadro à óleo ou uma aquarela no acervo de uma casa ou museu. Mas, seja em que forma de expressão for, ele é alguém que antes de criar emociona-se e, só assim, nos faz refletir sobre a importância da vida.
Aos pés dos Andes, aonde o branco das neves eternas espeta o azul do céu, na Zona Rural da pequena Los Angeles, Sul do Chile, em meio a bosques de lariços e carvalhos e sob pôr do sol umedecido pelos ventos marinhos, nasceu Gonzalo Ivar Cárcamo Luna, em 8 de fevereiro de 1954. Era um daqueles dias quando amarelo e vermelho incendeiam o limite verde do horizonte nos domínios dos índios Mapuches. Às margens do Rio Bío-Bío, esses bravos guerreiros resistiram aos colonizadores por séculos, dando origem a pessoas éticas, corajosas e livres.
Filho de camponeses e pai severo, exemplo de trabalho e persistência; mãe doce, apreciadora de arte e leitora de livros o menino Cárcamo deu os primeiros passos em uma casa simples, mas com quadros nas paredes, pintados pela tia Tetey. Do lado de fora, paisagens marcantes: pomares, animais e carroças cujo o ranger das rodas somado às notas tiradas ao piano pela mãe criavam inesquecível sinfonia.
REVELAÇÃO
Foi ali, ao instintivamente delinear com o dedo na terra do chão as sombras dos cinco irmãos, que Cárcamo desenvolveu talento para deixar que a inspiração invada primeiro o coração, depois a mente. O menino descobriu bem cedo a força da luz na percepção da imagem. Assim, sempre emocionado, surgiu o desejo de mostrar o que percebia/sentia na mágica essência do existir.
As revistas em quadrinhos traziam guerra e far west, ou eram da Disney. Com o irmão Carlos, recriava as histórias sem consciência do exercício que fazia para o futuro. Na escola, os cadernos tinham mais desenhos que matérias. Caricaturas dos professores, vez por outra, lhe davam um recreio forçado. Em casa, a tia pintora assinava "Seleções do Reader's Digest". A revista estampava aquarelas na capa. Com modestos recursos técnicos ele as copiava, o desafio era imenso.
O avô materno tinha um moinho de trigo na cidade. Seus pais venderam as terras na Zona Rural, compraram o moinho e foram para Los Angeles. Cárcamo ajudava o pai a fazer a matéria prima do pão, ia à escola e, com frequência, desviava-se do caminho dos colegas rumo à praça para ir ao hotel ver exposições de quadros.
EXÔDO
Em 1974, entra na Universidade Técnica del Estado, campus de Concepción, em Arquitetura. Havia clima para desenvolver a prática da aquarela, os professores já não se aborreciam em serem caricaturados. Ao término do segundo ano, Cárcamo se encanta com Oscar Niemeyer. Decide mudar-se para o Brasil e aqui concluir o curso. Com ajuda da mãe vem, em 1976, para São Paulo, é hospedado por amigos na cidade de Santo André.
Não consegue retomar o curso de Arquitetura, precisa trabalhar. Entra em uma agência de publicidade. Apaixona-se pelo Brasil, sua gente. Colabora com o jornal "Bagatela", impresso no "Diário do Grande ABC". Não para de pintar. Atua em produtoras de desenhos animados. Participa na produção do "Grilo Caetano", de Walbercy; trabalha nos estúdios de Daniel Messias e Cesar Sandoval (conhece Jorge Benedetti), todos mestres do gênero. Cárcamo fez curtas metragens para os estúdios Disney (pela HGN), em um emocionado reencontro com os personagens da sua infância.
Mas, foi com Gauguin, Velasquez, Goya, Carot, Sorolla, Wyeth que Cárcamo aprendeu a penetrar na alma do ser humano, buscar o inconsciente e não apenas o visível. Sua arte é sempre nova, não há um traço básico que a identifique. Foi lendo a biografia de Gauguin, seu isolamento, e o livro "Expedição Kon-Tiki", de Thor Heyerdhal, que Cárcamo vai para a Ilha da Páscoa e fica quatro anos pintando. Produz 100 óleos que integram exposição itinerante do SESC-SP.
ETERNIDADE
De volta ao Brasil, Cárcamo mora na Bahia, expõe no Museu de Arte. Não encontra trabalho. Descobre o "Pasquim", encartado no "Jornal da Bahia". Escreve ao cartunista Jaguar, manda trabalhos e faz um apelo: diante da situação, iria volta para o Chile. Jaguar abre duas páginas na edição seguinte do jornal, elogia o artista e conclama o mercado a não deixa-lo voltar aos domínios do ditador Pinochet. Chovem convites. Cárcamo estava adotado pelo Brasil, reconhecido por seu grande talento.
Trabalha para "Folha de S. Paulo", "O Estado de S. Paulo", "Visão", "Veja", "IstoÉ", "Época", "Carta Capital" e grandes editoras de livros. São cerca de 50 obras ilustradas (Machado de Assis, Gabriel García Márquez, Eça de Queiroz, Tolstói etc) e sete próprias. Seu livro "Modelo vivo, natureza morta" é obra referencial na literatura infantojuvenil. No Salão Internacional de Humor de Piracicaba, em 1987, foi premiado pela caricatura de Mãe Menininha do Gantois. Viveu um ano em Barcelona, viajou pela Europa visitando museus e colaborou com o diário "El País", levado por Loredano, também grande caricaturista.
Cárcamo tem exposto, com sucesso, seus óleos e aquarelas no Brasil e no Exterior. São trabalhos que fogem às escolas e tendências, trazem as imagens do passado e do presente, sempre fundamentadas em excepcional técnica, emoção e muita qualidade. "Faço apenas o que a inspiração me pede para manifestar. Ter liberdade, ser autêntico ao expressar o sentimento é o valor maior da criação", diz Gonzalo Cárcamo, que trabalha e leciona em seu bucólico estúdio em Ilhabela, litoral Norte paulista.
Ricardo Viveiros para a Revista Abigraf, em outubro de 2012.