A arte é divina. A vida é humana. O artista é um ser divino que pode encantar o humano e, com o belo, produzir o milagre ateu da transformação. Porque o belo faz pensar o feio. E, assim, instiga a essência do ser e propõe mudanças em nome da felicidade.

O poeta Carlos Drummond de Andrade, embora comedido em elogios, não se conteve diante da arte de Fayga Ostrower e disse num poema: “Fayga faz a forma flutuar e florir na pauta musicometálica”. Verdade. A artista, apaixonada pela música, em suas gravuras tirou do metal (além de outros meios) um impressionante ritmo, criando imagens que bailam despertando emoções, revelando um outro lado da vida. Em alguns momentos, o som do silêncio. A arte como algo divino, criado pelo homem — no entender da ateia Fayga, o único Deus.

ALEGRO

Nascida Faiga Perla Krakowski, em 1920, em Lódz, Polônia, primogênita de quatro filhos, enfrentou, ainda menina, o terror nazista. Sua mente guardou duras imagens, que geraram inabalável compromisso com a dignidade humana. Sem nenhum rancor. Pelo contrário, com a esperança de que apenas o ser humano pode resgatar e distribuir amor, que, muitas vezes, precisa esconder-se do ódio como um refugiado de guerra.

Da Polônia para a Bélgica, caminhando em silêncio pelas florestas, e de lá para a América do Sul. Esta foi a saga da família judia fugindo à perseguição de Hitler. Fayga sempre foi ótima aluna, aprendeu várias línguas e taquigrafia, o que lhe ajudou no caminho e na chegada ao Brasil. Mesmo na terceira classe do navio, conseguiu um chocolate em troca de um retrato que fez do comandante. A primeira visão, ao se aproximar do Rio de Janeiro, foi a do Cristo Redentor: “Uma cruz flutuando no céu”, inacreditável.

Os Krakowski passaram por uma pensão carioca e, depois, fixaram-se na cidade de Nilópolis, na sofrida Baixada Fluminense. Fayga precisou trabalhar para ajudar a família. Seu dia começava às 5 e nunca terminava antes das 21 horas. Ia e voltava de trem para a capital, onde conseguiu um emprego de auxiliar de escritório. A família, com o tempo, voltou ao Rio. Fayga, sempre aplicada, foi evoluindo na multinacional em que trabalhava. Matriculada na Associação de Belas-Artes, após o expediente na empresa, aprendia desenho. Entre 1939 e 40, conheceu o alemão Heinz Ostrower, também refugiado, com quem se casou. Historiador e filósofo, marxista convicto, Heinz era uma pessoa reservada e sensível. Tiveram dois filhos: Carl Robert (1949) e Anna Leonor (1952), a “Noni”.

ADÁGIO

Um par de goivas (instrumentos usados para criar xilogravuras) e um pedaço de linóleo proporcionaram as ações iniciais de Fayga no campo da gravura: ilustração de livros. “O Cortiço”, de Aluisio Azevedo, foi o primeiro de uma série. Um anúncio de jornal, em 1947, chamou a sua atenção: a Fundação Getúlio Vargas oferecia um curso de Artes Gráficas. “No curso eu me encontrei. Queria ser artista.” Foram seis meses de aulas diárias, de manhã à tarde.

Fayga nunca se satisfez com descobertas, com prêmios. Sempre buscou mais. Ainda em 47, deixou o bem remunerado emprego fixo para iniciar corajosa carreira de artista plástica, professora e escritora. Seus primeiros trabalhos, xilos e gravuras em metal, saíram de uma prensa construída por ela e usada num estilo próprio. Tinha mãos capazes de promover grandes rupturas e transformações, a partir da crença na arte como essência da vida. No início, os temas eram figurativos, comprometidos com sua filosofia socialista. Um período expressionista, mas no qual a emoção e a técnica se harmonizavam com absoluta liberdade, respeitosa independência.

Em sua primeira exposição individual, no Rio de Janeiro, com xilos e águas-fortes, Fayga explicou no catálogo da mostra como equilibrava estética com ética: “Toda boa arte traz uma mensagem do tempo em que é criada, além de uma mensagem de verdade e beleza humanas permanentes no percurso da existência do homem”. Um dos pontos altos de seu trabalho em gravura está na habilidade em usar as cores dominando os espaços e obtendo luminosidade. Sua arte nos obriga a olhar além do que vemos, como se cada obra fosse viva e pudesse, de repente, falar e nos surpreender.

PRESTO

Quando sua temática migrou para o abstracionismo (1954), a artista sofreu um patrulhamento ideológico. Foi acusada de estar traindo as causas sociais. Bobagem, radicalismos. Fayga evoluiu, soube dominar sua capacidade criativa quando deixou que seu trabalho fluísse mais. Assim, cumpriu a travessia para outra fase. Em 1955, partiu como bolsista para os Estados Unidos. Em Nova York, por um ano, tornou-se assídua frequentadora de museus, além de trabalhar em artes gráficas no Brooklyn Museum Art School. Poderia ter ficado para sempre. Suas gravuras levadas do Brasil foram expostas na respeitada galeria The Contemporaries e não lhe faltaram convites para lecionar. Mas, voltou.

De 1955, e até hoje, a obra de Fayga mereceu notoriedade, de público e de crítica, fazendo-se presente em importantes acervos com gravuras e aquarelas, aqui e no Exterior. Em 1957, vieram a primeira viagem à Europa e a conquista de prêmios nas Bienais Internacionais de São Paulo e de Veneza. Depois, convites para exposições individuais na Holanda e na Argentina. A carreira tomou um rumo irreversível, alcançando crescente sucesso. Quando aconteceu o Golpe de 1964, instaurando a ditadura militar que vitimou o Brasil, Fayga estava vivendo nos EUA e lecionava no Spelman College, universidade para negros — uma época na qual o apartheid dominava aquele país.

Fayga escreveu vários livros. Alguns, como o “Universos da Arte” (com mais de 20 edições), tornaram-se obras referenciais. Ela foi uma artista que também soube criar amigos, para toda a vida e além dela: o gravador Lívio Abramo, o poeta Murilo Mendes, o compositor Paulinho da Viola, o marido, os filhos e os netos são alguns exemplos. Seus amigos falam dela como se estivesse viva. E está! Mesmo depois de 2001, quando se tornou uma sonata de força e beleza gravada na memória de amigos e admiradores em todo o mundo.