“Rios, todos os rios são águas fugindo, são águas correndo, de todos os recantos, de todas as terras... São águas rumando o mesmo destino: que as águas dos rios se perdem no mar...” Os versos do marinheiro, pintor e poeta José Pancetti não retratam a vida de seu autor. Pancetti se encontrou no mar, das águas extraiu força para pintar e razão para viver.

Os pais, italianos da Toscana, imigraram para o Brasil em 1891. Ele pedreiro e ela dona de casa viviam em Campinas quando, em 18 de junho de 1902, nasceu o filho Giuseppe Giovanni Pancetti, ou simplesmente José. Oito anos depois, a família muda para São Paulo. O engenheiro Ramos de Azevedo precisava de mão de obra qualificada para construir o Teatro Municipal. Pensando em prosperar, o pai Giovanni, a mãe Corina, José e as irmãs vão morar no bairro do Brás — núcleo italiano na Capital paulista. A cidade não parava de crescer, não faltaria trabalho para um bom pedreiro. A realidade é outra, até hoje. Não há trabalho, o pai se embriaga diariamente, a mãe lava roupa para fora e as irmãs, já mocinhas, são exploradas numa tecelagem.

Giovanni, para reduzir despesas, manda José e sua irmã, Ida, para a casa dos tios na Itália. O ano é o de 1913, José vive em Massa-Carrara, pequena cidade do noroeste italiano, à beira do Mar da Ligúria. Estuda por algum tempo no colégio dos padres salesianos. Vem a guerra, seu tio vai lutar, José segue para Bolonha, depois Pietra Santa (casa dos avós). Tentam fazer do menino um camponês, não conseguem. Quem sabe, então, um operário? E José passa pelas mais diferentes fábricas, sem sucesso. Acaba a guerra, o tio volta e sabendo do estilo rebelde do sobrinho brasileiro, decide por algo mais disciplinar: alista José na Marinha de Guerra italiana. Como não pára em lugar nenhum, quem sabe se encontra viajando?

Ter voltado ao Brasil mudou muito pouco sua vida. Trabalha como garçom, auxiliar de ourives, limpador de esgotos, tecelão, servente em hotel, pintor de paredes e cartazista. Nessa última função, tem seu primeiro contato com a arte. Sente falta do mar e vai para o Rio de Janeiro, tenta uma vaga num navio de guerra. Não consegue. Vive perambulando pelas ruas, dorme em estações de trem. Acaba embarcando, como clandestino, num navio norte-americano. É descoberto. Em 1922 alista-se na Marinha de Guerra brasileira, viaja o mundo e participa das revoluções de 1922, 24, 30, 32 e 35.

Diria José Pancetti, anos depois, “Procurei sempre ficar na Marinha de Guerra, onde a compreensão de meus superiores me permitiu trabalhar pela arte e, ao mesmo tempo, viver com os meus vencimentos militares”. Foi na Marinha que Pancetti descobriu a sua vocação para arte pintando cascos, camarotes, pontes de comando de navios. Seu trabalho na Companhia de Praticantes Especialistas de Convés foi tão marcante que, até mesmo, definiram uma cor com seu nome: o “verde pancetti”.

SURGE O PINTOR

“Certa vez, não sei como, tive vontade de pintar aquilo que meus olhos viram na louca carreira do mar...” E foram muitas as obras pintadas por ele em caixas de fósforos, cartões, papel. Em 1932, ao assistir um combate entre um navio de guerra e um avião, Pancetti reproduziu a cena num desenho publicado no jornal “A Noite”. A ilustração mereceu comentários positivos e o artista foi aconselhado a entrar no “Núcleo Bernadelli”, formado em 1931 em homenagem aos irmãos Henrique e Rodolfo Bernadelli, professores liberais da Escola Nacional de Belas-Artes, no Rio de Janeiro. Nesse tempo, a escola sofria um conservadorismo imposto pelo seu diretor, professor Memória, um adepto do Fascismo, que não permitia aos professores e alunos liberdade de pesquisa, ensino e criação nas artes plásticas. Pancetti ingressou no Núcleo e teve no pintor polonês Bruno Lechowsky seu principal orientador.

A exemplo de Guignard, Pancetti está entre os mais importantes nomes do lirismo na moderna pintura realista brasileira. A pureza dos trabalhos, quase ingênuos, não interfere na disciplina dos planos geométricos que recortados com precisão, identificam-se mesmo distintos entre si. A singeleza de seus trabalhos lhe valeu o elogio do poeta chileno Pablo Neruda: “Um grande pintor, de coração puro”. Pancetti pintava por puro instinto. Foi durante a Exposição de Arte Francesa, que aconteceu em 1940 no Rio de Janeiro, que o artista experimentou pela primeira vez uma proximidade com o melhor do modernismo em nível internacional.

Van Gogh impressionou Pancetti, que se identificou com o holandês nas semelhanças trágicas de suas histórias de vida. Pode-se observar, excetuando as obras dos períodos carioca e baiano (de cores fortes), o caráter lamentoso predominante na sua pintura, retrato da solidão do filho de pobres imigrantes que, na Marinha e na arte, encontrou companhia para enfrentar a vida e se perder/encontrar nas águas de todos os mares do mundo.

É importante observar que toda a obra de Pancetti se caracteriza por fundamentos de seletividade, despojamento e perfeito equilíbrio. Fugindo às regras acadêmicas, buscou o Impressionismo e o Pós-Impressionismo mais rápido que os demais companheiros do Núcleo, nisso igualando-se a Milton Dacosta. Os dois mostraram-se os mais evoluídos do grupo. Entretanto, não se pode chamar Pancetti de um pintor de vanguarda. Ou seja, nada de experimentos, a idéia é retratar (não reinventar) a natureza, o homem, a vida. Pancetti mesmo dizia: “Qualquer representação da vida deve ser real”. Mas, naturalmente, ele desenvolveu sua arte simplificando as formas, quase alcançando o abstrato, mas, sempre, fiel à natureza. Seus melhores quadros mostram a água, o céu, a linha do horizonte e um pedaço da praia. Para que mais?

Pancetti não morreu no mar, como sempre desejou desde que descobriu o compositor Dorival Caymmi. Em crise, de frente para a morte, pede que lhe abram a janela que dá para o mar. “O ar entrou vindo do oceano. Aquele ar, este ar, que me alimenta desde criança!”, registra em seu diário. Pancetti morreu em 10 de fevereiro de 1958 no Hospital Central da Marinha, no Rio de Janeiro, aos 53 anos de idade. O marinheiro pintava, o pintor navegava e ambos eram o mesmo homem apaixonado pelo mar, na tela ou fora dela.