Nascido do inconformismo com o tradicional ensino artístico ministrado na Escola Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro, um grupo de alunos resolve se rebelar fundando, em 1931, num estúdio fotográfico, um núcleo de artistas que vai se opor aos cânones conservadores do aprendizado das artes plásticas naquela cidade. Esse grupo será conhecido como Núcleo Bernardelli.

Fundado em 12 de junho de 1931 por alguns pintores comprometidos com a oposição ao modelo de ensino da Escola Nacional de Belas Artes, o Núcleo Bernardelli vai preconizar a formação, o aprimoramento técnico e a profissionalização artísticos naqueles anos. Um dos líderes do grupo, o artista Edson Motta (1910 – 1981) sintetiza a função do núcleo ao afirmar na época que: “(...) queremos liberdade de pesquisa e uma reformulação do ensino artístico da Escola Nacional de Belas Artes, reduto de professores reacionários, infensos às conquistas trazidas pelos modernos". Além de democratizar o ensino, o grupo almejava permitir o acesso dos artistas modernos ao Salão Nacional de Belas Artes e aos prêmios de viagens ao exterior, até então dominados pelos pintores acadêmicos.

Nascido das conversas informais no antigo “Café Chic” na Rio de Janeiro de 1930, entre os boêmios e intelectuais que o freqüentavam, o nome do grupo surgiu como uma homenagem a dois professores da ENBA – os irmãos Rodolfo Bernardelli (1852 - 1931) e Henrique Bernardelli (1858 - 1936) –, que no final do século XIX, insatisfeitos com o ensino da escola, montaram um curso paralelo na Rua do Ouvidor, no centro da cidade carioca. A primeira sede do Núcleo Bernardelli foi no Studio Nicolas, do fotógrafo Nicolas Alagemovits, conhecido por sua boemia e sua prodigalidade. Logo depois, o grupo mudou-se para os porões da Escola Nacional, onde funcionou até 1936, quando foi expulso de suas dependências. Dessa data em diante, transferiu-se mais duas vezes, até se extinguir em 1942.

Alguns dos artistas mais representativos das artes plásticas brasileiras no século XX fizeram parte desse Núcleo, também denominado por críticos de arte como os “nucleanos do ateliê livre". Foram eles, além de Edson Motta, os pintores Ado Malagoli (1906 - 1994), Bráulio Poiava (1911 - ?), Bustamante Sá (1907 - 1988), Bruno Lechowski (1887 - 1941), Eugênio Sigaud (1899 - 1979), Camargo Freire (1908 - 1988), Joaquim Tenreiro (1906 - 1992), Quirino Campofiorito (1902 - 1993), José Rescala (1910 - 1986), José Gomez Correia (1915 - ?), José Pancetti (1902 - 1958), Milton Dacosta (1915 - 1988), Manoel Santiago (1897 - 1987), Yoshiya Takaoka (1909 - 1978) e Yuji Tamaki (1916 - 1979).

A criação do Núcleo Bernardelli nos remete a um contexto artístico, dos anos 1930 e 1940, atravessado por tentativas de ampliação dos espaços da arte e dos artistas modernos, por meio da criação de grupos e associações. Como bem colocou Mário de Andrade em uma conferência proferida no início dos anos 1940 sobre Modernismo, os artistas da Semana de 22 não deveriam servir como exemplo, mas sim como lição pela pouca impetuosidade em romper com os convencionalismos sociais aliados às tradições da produção artística à época. Nesse sentido, o Núcleo, junto com A Pró-Arte Sociedade de Artes, Letras e Ciências (1931) e o Club de Cultura Moderna (1935), no Rio de Janeiro, ao lado de agremiações paulistanas como o Clube dos Artistas Modernos (CAM), a Sociedade Pró- Arte Moderna (SPAM) - ambos de 1932 -, o Grupo Santa Helena, de 1934, e a Família Artística Paulista (FAP), de 1937, são expressões do êxito do associativismo como estratégia de atuação dos artistas na vida cultural do país naqueles anos. Cada qual à sua maneira, esses grupos problematizaram o legado do modernismo.

O Núcleo desses artistas foi concebido muito mais como uma tentativa de ocupação de espaço profissional, do que um grupo preocupado com a reformulação da linguagem artística. A sua função se resumia basicamente em incentivar o estudo e a formação dos artistas pela convivência e troca de idéias e experiências in loco. Desenho com modelos vivos, pintura ao “ar livre”, nús, naturezas-mortas, retratos e auto-retratos eram realizados no ateliê, que promovia também exposições das obras. Entre 1932 e 1941 foram realizados cinco salões dos integrantes do Núcleo Bernardelli.

Além das paisagens, amplamente realizadas, os artistas do grupo também pintavam cenas urbanas e figuras humanas. O impressionismo francês terá forte inspiração em algumas das paisagens criadas por artistas deste grupo, bem como nas naturezas-mortas construtivistas de Dacosta. Também será possível localizar, em parte da produção do grupo, como em obras de Malagoli, por exemplo, afinidades com o ideário do “retorno à ordem” de influência acadêmica. Alguns trabalhos de Sigaud e Campofiorito dos anos 1930, por sua vez, igualmente anunciam questões sociais, muito em voga nas manifetações políticas e artísticas daqueles anos.

No entanto, de todos os artistas membros do Núcleo, os nomes de José Pancetti e Milton Dacosta serão os destaques na cena artística dos anos posteriores em função das produções inovadoras e das faturas pessoais dos seus trabalhos. Pancetti se notabilizará pelas marinhas que realizou, além dos diversos retratos e auto-retratos. Os anos de 1950, considerados o ápice de sua produção, nos legaram trabalhos primorosos que mostram os desafios da criação compositiva e o elaborado uso da cor enfatizando a organização dos planos geométricos, quase se tornando uma abstração. Milton Dacosta, responsável por uma obra convencionalmente dividida em fases, em função das influências que recebe, apresenta em inúmeras obras a esquematização das formas. Como bem colocou o crítico de arte Mário Pedrosa, “as lições construtivas, as deformações picassianas e cubistas, o equilíbrio entre planos colorísticos são todas preocupações precoces de seu trabalho”. Nesse sentido, realmente, o abstrato é "o ponto de partida” de Dacosta, e não apenas a marca de sua obra após a década de 1950.

Sem dúvida, a importância do Núcleo Bernardelli não se restringe apenas na qualidade artística individual dos membros que o compuseram, mas principalmente na sua luta a favor da democratização do ensino de arte no Brasil e do acesso dos artistas modernos ao mercado e aos Salões de Arte, corroborando, nesse sentido, para que a estética modernista se fixasse como um dos baluartes da produção artística brasileira nas décadas seguintes do século XX.

 

José Márcio Viezzi Molfi

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