Poteiro 1 PB cf809

Esta é certamente uma das maiores, senão a maior exposição de obras de Antônio Poteiro até o presente. Tive a oportunidade de curar as quatro últimas individuais do mestre ceramista e pintor, promovidas pelo Instituto Poteiro, dirigido por seu filho Américo: “O Brasil de Poteiro”, no Museu de Arte de Goiânia e no Museu de Arte Brasil-Estados Unidos, em Belém do Pará, em 2014; “Poteiro por inteiro”, no Centro Cultural Correios de São Paulo, em 2016, e “Poteiro, colorista do Brasil”, no Museu de Arte Contemporânea do Centro Cultural Oscar Niemeyer, em Goiânia, também realizada no ano passado. Todas foram mostras grandes, realizadas em espaços generosos, e com obras importantes. Nenhuma das quatro, todavia, apresentou tamanho número de obras quanto esta. Com efeito, esta exposição reúne 89 obras de Poteiro, sendo 82 pinturas e 7 cerâmicas, realizadas de 1974 a 2008, dois anos antes de sua morte em Goiânia. Não é pouco.

Isto tornou-se possível porque a galeria que a realiza, a Errol Flynn, tem uma antiga e persistente relação de trabalho com a obra de Poteiro. De tal forma que é a galeria de arte que, atualmente, tem em seu acervo o maior número de sua autoria. Todas reconhecidas como autênticas pelo Instituto Poteiro. Ao editar sua publicação mais importante – “Um Passeio pela Arte Brasileira” – a Errol Flynn colocou na capa do livro uma obra de Poteiro, aqui exposta: “Papai Noel brasileiro”.

Poteiro certamente está feliz lá em cima. Por que Minas Gerais faz parte de sua história. Nascido numa aldeia em Braga, norte de Portugal, Poteiro emigrou muito cedo para nosso país, morando em três estados brasileiros. Um deles é Minas Gerais, onde ele chegou com 8 anos de idade. Foi em Araguari, no triângulo mineiro, que Poteiro viveu os anos mais felizes de sua infância. Poteiro sonhava em ser poeta, cantor, aviador. Chegou a escrever alguns poemas. Num deles confessa que Araguari foi a terra de sua juventude, a “terra das cabeceiras”. Morou também em Uberlândia, onde trabalhou como oleiro e de lá partiu para uma aldeia Carajá, perto da ilha do Bananal, na qual se aproximou visceralmente da natureza. No início dos anos 60, dirigiu-se, finalmente, para o Estado de Goiás, de onde nunca mais saiu. Foi em Nerópolis, nas proximidades de Goiânia, que ele tomou consciência de suas qualidades artísticas. Foi lá que ele fez suas primeiras peças “não utilitárias”, criativas. Orientado pela folclorista Regina Lacerda começou em Nerópolis a assinar suas criações. Como Antônio Batista de Souza, seu nome civil, pareceu pouco adequado à folclorista para este fim, perguntou-lhe como ele era mais conhecido. “Sou geralmente chamado de Poteiro, por causa dos potes que faço”. A partir de então passou a adotar este nome artístico. Poteiro dirige-se na sequência para Goiânia, onde vendia suas cerâmicas em feiras livres; na feira hippie, que ele ajudou a criar, no Mutirama e depois em frente ao Grande Hotel; numa banca no Mercado Central, pelas ruas da cidade, na beira de estradas, levando-as num carrinho de mão ou de ônibus. Foi um homem de uma simplicidade desconcertante. Nunca usou um terno, andava de sandálias, mas, em contrapartida, era dotado de um senso de observação muito aguçado.

Com o tempo Poteiro foi aprendendo que arte se expõe em espaços culturais, em galerias e museus. Em 1976, realiza sua primeira exposição individual de cerâmica e pinturas. E onde a realiza? Na Fundação de Arte de Ouro Preto – FAOP, outro fato que o liga a Minas Gerais. Foi a primeira de uma série de cerca trinta que ele realizou em vida, três delas no exterior. Pressentindo o potencial pictórico de Poteiro, Siron Franco o estimulou a também expressar-se artisticamente pela pintura. Para tanto, abriu-lhe o seu ateliê, no Setor Ferroviário de Goiânia, no alpendre do qual Poteiro aprendeu a pintar.

A cerâmica de Poteiro, feita com uma massa argilosa que ele adaptou às suas necessidades, têm a cor da terra, às vezes de um marrom mais escuro, às vezes mais claro, raramente policromada. Privilegia a verticalidade em suas cerâmicas que, na maioria das vezes, ostenta uma forma tronco-cônica, de textura áspera, com saliências e reentrâncias que definem figuras ou detalhes. Inclui, quase sempre, no corpo das mesmas, figuras de animais diversos, tal como acontece nas magníficas peças “A ecologia” e “Deus da natureza”, elementos vegetais, como ocorre em “Deusa menina” e, mais raramente, figuras humanas (“Os músicos”). Em suas esculturas cerâmicas, Poteiro não tem compromisso com o verismo, nem mesmo com a imagética referencial sedimentada pela tradição religiosa, e muitas vezes metamorfoseia seres e objetos, criando peças de sentido duplo ou ampliado como se verifica em “Deus tartaruga”.

A pintura do artista é de uma qualidade formal e colorística surpreendente, de uma organização exemplar e de uma inventividade deslumbrante, difícil de encontrar na plástica brasileira. A pintura que ele nos legou é de uma riqueza extraordinária, de uma magia envolvente e bela. Sobre um fundo chapado que remete ao céu, a um rio, a uma lagoa ou a um espaço aleatório, ele dispõe flores, pássaros, animais diversos, casas enfileiradas, figuras humanas ou religiosas, como se vê em numerosas pinturas incluídas nesta mostra. Há uma orquestração de azuis, amarelos, vermelhos, verdes, laranjas, de tons diversos que, combinados, definem o universo pictórico poteiriano. Os conjuntos muitas vezes sugerem continuidade, como se a pintura flagrasse uma parte do todo, tal como sucede em “Cavalhada de frente”; em alguns casos, todavia, ele fecha a composição criando faixas de figuras tal como ocorre no belíssimo “Carnaval”, de 1997, uma das mais belas obras desta exposição, que remete a uma tapeçaria oriental. Não raro as imagens referem-se a uma história, a um acontecimento social ou religioso, a um evento pessoal.

Mais diversificado do que na cerâmica, o espectro temático de Poteiro na pintura é amplo, privilegiando as cirandas, as ceias de diferentes ordens, cidades assentadas sobre a terra ou suspensas no ar, flores, cenas bíblicas, girassóis, o Pantanal, o Araguaia, festejos populares, a bicharada, a passarada, a “pavãozada”, a cavalhada, de frente e de lado. E também as borboletas, os beija-flores, as revoadas, as lavadeiras, as lagoas, os carros de boi, os casamentos no céu, os retirantes, a Procissão do Fogaréu, o nascimento de Jesus, santos, particularmente São Francisco, músicos. Enfim, seu universo vivido e, principalmente, imaginado. Todos estes temas estão aqui representados.

Poteiro costumava dizer: “sonhava em ser um poeta, fiz da cerâmica e da pintura a minha poesia”. E que poesia ele fez!... E que antologia esta mostra representa!...

· Antonio Poteiro – Retrospectiva, Errol Flynn Galeria de Arte, Belo Horizonte, setembro-outubro de 2017