Em 1933, Francisco Rebolo Gonsales alugou a sala 231, no segundo andar do Palacete Santa Helena, na Praça da Sé, em São Paulo para usá-la como ateliê de pintura e escritório de decoração. Em 1935 instala-se a seu lado, na sala 233, na parte do prédio voltada para a Praça Clóvis Bevilacqua, o também decorador e empreiteiro Mário Zanini. Surgia ali o embrião de um importante grupo de artistas que teria participação destacada na história da modernidade paulista: o Grupo Santa Helena.
O Palacete Santa Helena, construído pelo empresário Manuel Joaquim de Albuquerque Lins, ex-presidente do Estado de São Paulo, foi inaugurado em 1925. Era um dos maiores edifícios de São Paulo e, para muitos, o mais belo da cidade. Projetado originalmente por Giácomo Corberi, abrigaria um hotel, que foi descartado posteriormente para dar lugar a um luxuoso cine-teatro, com ocupação de três pavimentos do bloco principal, com plateia e frisas no térreo, camarotes no mezanino e uma grande galeria no piso superior, com capacidade para 1500 pessoas. Foram instaladas lojas no térreo do edifício que também dispunha de duas sobrelojas e, nos pavimentos superiores, 276 salas destinadas a escritórios. O projeto previa ainda um salão de festas no subsolo, que acabou cedendo lugar a uma nova sala de cinema, o Cinemundi. A movimentação cultural da cidade que vira acontecer não muito longe dali, no Teatro Municipal de São Paulo, em 1922, a Semana de Arte Moderna, teria levado seu empreendedor a apostar na demanda cultural no centro da cidade. O importante edifício, com decoração luxuosa e de perfil multifuncional, todavia, fora construído num local e numa época que frustrariam as pretensões de ocupação social e profissional de seu empreendedor.
Com efeito, na época, a Praça da Sé começou a se transformar com a instalação de terminais de ônibus, que ocuparam áreas antes destinados ao estacionamento de automóveis e à circulação de pedestres. Localizado nas proximidades da Praça da Sé, o Largo do Tesouro, ponto final de bondes que ligavam o centro da cidade ao Brás, à Penha e outros bairros de baixa renda, recebia cada vez maior número de populares. A presença cada vez maior de pessoas de menor poder aquisitivo no local levou profissionais e comerciantes a se transferirem para a Praça Patriarca, para as ruas Líbero Badaró, Barão de Itapetininga e vias urbanas contíguas, região que passou a constituir o que ficou conhecido na época como Centro Novo. Num segundo momento todo o centro velho enfrentou um processo de desvalorização, com a ascensão da Avenida Paulista e bairros vizinhos.
As salas do Santa Helena, destinadas originalmente a profissionais liberais e escritórios de empresas importantes, em função da baixa taxa de ocupação começou a ter seus alugueis diminuídos abrindo espaço para a presença no edifício de empresas de menor porte, de outros profissionais e de entidades representativas de movimentos operários.
Este fato tornou possível a instalação, no belo Palacete Santa Helena, dos ateliês de Rebolo e Zanini, definidos por Paulo Mendes de Almeida em seu livro De Anita ao Museu como “artesãos profissionais da pintura de paredes e artistas amadores da pintura de cavalete”. Para aliviar o aluguel, Zanini convidou Aldo Bonadei e Manuel Martins a trabalhar na mesma sala. Bonadei permaneceu nela durante alguns meses, deixando-a em seguida para pintar em ateliê próprio, montado em sua casa. Bonadei foi então substituído por Clóvis Graciano e Alfredo Volpi; a eles juntou-se, em 1937, mais um santelenista: Alfredo Rizzotti. Paralelamente, Rebolo também sublocou seu ateliê-escritório a dois outros artistas: Fúlvio Pennacchi e Humberto Rosa. As duas salas eram interligada por uma porta interna e os dois ateliês transformaram-se num local comum de trabalho e discussão dos problemas da arte. À noite eram promovidas com frequência sessões de modelo vivo e, nos fins de semana, o grupo costumava sair para pintar na periferia de São Paulo e em cidades do interior paulista. O local era frequentado por amigos, tais como Paulo Rossi Osir, Vittorio Gobbis, Arnaldo Ferrari, Wasth Rodrigues, Arnaldo Barbosa, Paulo Sangiuliano e outros, alguns citados de quando em vez como pertencentes ao grupo. Tradicionalmente, porém, considera-se como membros do grupo os 9 mencionados, embora não seja este um assunto fechado já que o Grupo Santa Helena foi formado espontaneamente, não realizou exposições exclusivas de seus membros, nem lançou nenhum manifesto dizendo a que vieram seus membros.
A maioria dos santelenistas eram de origem italiana. Volpi e Pennacchi eram imigrantes; Bonadei, Graciano, Rizzotti , Rosa e Zanini, descendentes de italianos; Rebolo era filho de espanhóis e Manuel Martins, de portugueses. Eram, em sua maioria, praticamente autodidatas, no sentido de não terem frequentado Academias de Arte; apenas Bonadei e Pennacchi fizeram estudos regulares, na Itália. Rizzotti frequentou cursos livres, também na Itália, e Graciano, por indicação de Portinari, foi aluno informal de Waldemar da Costa. Rebolo e Zanini eram frequentadores das sessões de modelo vivo da Escola Paulista de Belas-Artes.
Os santelenistas se dividiam entre a arte e outros ofícios, uma vez que não conseguiam viver do produto do trabalho como artistas plásticos. Assim, Rebolo, Zanini e Volpi eram também decoradores, pintores de frisos, florões e ornatos diversos em casas e apartamentos da cidade. Antes de instalar-se no Santa Helena, Rebolo foi também jogador semiprofissional de futebol, tendo integrado a equipe do Corinthians que venceu a Campeonato do Centenário, em 1922. Clóvis Graciano, que fora ferroviário, pintor de postes, porteiras e tabuletas de avisos para estações da Estrada de Ferro Sorocabana, na época tornou-se Fiscal de Consumo. Fúlvio Pennacchi, que chegou ao Brasil em 1929, numa época de crise econômica, trabalhou em várias frentes, entre elas a publicidade e o comércio de carne. Além de artista plástico, Bonadei era figurinista e bordador; Manuel Martins, ourives e Rosa, professor de desenho. Contrariamente aos participantes da Semana de Arte Moderna de 22 e seguidores, os santelenistas eram pessoas de comportamento discreto, cordiais, voltados mais para o trabalho de ateliê do que para debates acalorados, a maioria de origem humilde. Isto levou Mário de Andrade a chama-los de “pintores proletários”.
O convívio diário promoveu uma troca de conhecimentos, uma espécie de socialização cultural do grupo, mantidas as diferenças pessoais, e desenvolveu uma camaradagem grupal que os manteve próximos mesmo depois de desativados os ateliês.
A primeira aparição do Grupo ocorreu em 1937 durante a 1ª Exposição do Grupo de Artistas Plásticos Família Artística Paulista. Lá estavam todos os santelenistas, com exceção de Rizzotti (que ingressou no grupo naquele ano), ao lado de Anita Malfatti, Armando Balloni, Arnaldo Barbosa, Arthur Krug, Hugo Adami, Joaquim Figueira, Rossi Osir e Waldemar da Costa. A Família Artística realizou nova exposição em 1939 e apenas mais uma, posteriormente, no Rio de Janeiro. Mas, a partir de então as participações dos aristas do Grupo se multiplicaram em salões oficiais nos quais obtiveram reconhecimento.
O Salão da Família Artística Paulista surgiu no mesmo ano em que se realizou a primeira edição do Salão de Maio, criado também em São Paulo para reunir “a produção de nossos pintores e escultores que são capazes de rasgar novos horizontes à expressão artística”, ou seja, comprometidos com a total liberdade de expressão e com os novos meios do fazer artístico. Um de criadores do Salão de Maio, o crítico Geraldo Ferraz, considerava os artistas da Família Artística Paulista, entre eles os membros do Grupo Santa Helena, tradicionalistas, “a morrer de amores pelos processos de Giotto e Cimabue”. No texto de apresentação do catálogo do Salão da Família Artística Paulista, ocorrido em novembro de 1937, um de seus teóricos afirma que “o Grupo de Artistas Plásticos da Família Artística Paulista, repudiando, do mesmo passo, o academismo, e não se encartando nas correntes mais avançadas da arte, e que, de resto, já cumpriram sua missão histórica, como o fauvismo, o cubismo, o futurismo, o orfismo, o surrealismo, etc., etc... mas aceitando, com imparcialidade, o que de proveitoso elas trouxeram – quer se sentir, entretanto, integrado nas mais legítimas tradições da pintura...”
Os santelenistas ocuparam uma posição curiosa no contexto da arte brasileira de então. Eram considerados modernos pelos acadêmicos e acadêmicos pelos modernos. Na verdade, eles eram pintores que valorizavam o métier, a boa técnica da pintura, mostrando-se sensíveis às ideias da volta à ordem preconizada pela arte do Novecento Italiano. Tinham prazer em recriar, cada um a seu modo, paisagens urbanas e suburbanas e a vida cotidiana das populações que viviam na periferia da cidade grande. Apreciavam ainda pintar naturezas mortas e fazer retratos, com exceção de Volpi, que não se autorretratou.
O tempo comprovou que o savoir faire não fez mal a nenhum deles. E que, sabendo fazer, eles puderam criar melhor suas formas, cores, ritmos e texturas e combina-las de forma pessoal. Puderam desenvolver uma linguagem própria, significativa e competente.
O Palacete Santa Helena foi demolido em 1971 para a construção da Estação Sé do Metrô de São Paulo. Foi um marco na construção civil de São Paulo. Mas certamente ficará na história sobretudo por abrigar em duas de suas salas, nos anos 1930 e 1940, um grupo notável de artistas, vários dos quais se posicionam no nível mais elevado da arte brasileira no Século XX.
Os oitenta anos de criação do Grupo Santa Helena foi comemorado, em 2016, com uma exposição de sessenta obras dos santelenistas na ProArte Galeria, São Paulo.
Enock Sacramento