O que um deficiente visual vai "ver" numa exposição?
Esta é uma pergunta que muitos leigos fazem, de forma discriminatória.
Em visita ao Conjunto Cultural da Caixa, que está promovendo a exposição "Referencial Anita Malfatti", em sua galeria da Sé, até 30 de maio, deficientes visuais da ADEVA - ASSOCIAÇÃO DE DEFICIENTES VISUAIS E AMIGOS, provaram que limitações físicas não são obstáculo para a imaginação.
No domingo, dia 18, eles percorreram os dois pavimentos do Conjunto onde se encontram 84 obras da artista modernista, muitas delas inéditas.
O presidente da ADEVA, Markiano Charon Filho, 40 anos, fez parte do grupo que realizou a visita. Ele é portador de deficiência visual congênita, ou seja, nunca enxergou e, portanto, só tem conhecimento das cores por teoria.
Os outros quatro visitantes, Antonio da Rocha Lima, 41anos, Pedrucio Ramos, 59 anos, sua esposa Arlete de Sá Ramos, 56 anos, e Rodrigo Alves, 20 anos, perderam a visão aos sete, oito, dez e quinze anos, respectivamente. Como tiveram contato com as cores antes de perderem a visão, ainda têm uma memória visual.
"Referencial Anita Malfatti" está sendo realizada pela ABBA - ACADEMIA BRASILEIRA DE BELAS ARTES, juntamente com o Conjunto Cultural da Caixa. Os monitores do Conjunto receberam treinamento para atender aos deficientes visuais da Fundação Dorina Novill para Cegos, que vem realizando um trabalho de inclusão do deficiente visual há 58 anos.
Eles aprenderam a lidar com o deficiente visual, ajudando-o a se locomover dentro do espaço físico e relatando com riqueza de detalhes o que está em exposição, para uma compreensão adequada.
O treinamento é efetuado de forma prática: os monitores ficam vendados e, com uma bengala, são conduzidos por outros monitores como se fossem deficientes visuais.
Eu também participei da orientação. Durante 30 minutos estive vendada, utilizei uma bengala e fui guiada pelas galerias, fazendo a leitura manual das peças encontradas no Museu da CAIXA.
Vivi uma experiência única e sem precedentes. Esse treinamento foi importante para que todos os orientados tivessem a noção real das dificuldades encontradas pelos deficientes visuais. Foi muito importante passar por essa experiência, pois isso nos possibilita entender o grande erro e a falta de respeito que cometemos ao excluir da sociedade pessoas que tenham sensibilidade suficiente para acumular conhecimentos culturais, independentemente de suas limitações físicas.
A arte alimenta o espírito também daqueles que não enxergam. No domingo, após acompanhar a visita monitorada, entrevistei o grupo. Os visitantes se mostraram simpáticos e muito comunicativos, com um senso de humor invejável.
Markiano agradece a oportunidade que a CAIXA está oferecendo, comentando que são poucos os espaços culturais que estão preparados para receber os deficientes visuais. Elogiou a iniciativa e os monitores em suas descrições e detalhamentos sobre as obras de Anita, dimensão, formas, conteúdos e cores.
Embora, sua imaginação sobre as cores seja teórica, faz associações, como quando toca a vegetação e sabe que sua cor é verde, embora nunca tenha visto. Sabe que determinadas cores combinam e outras não. Usa o exemplo das roupas que veste.
Fala também sobre a imaginação dos deficientes visuais e da importância da descrição das obras, pois mesmo que pudessem tocá-las, não estariam tendo a percepção das cores. Essa interatividade tem um peso psicológico muito favorável. Estar na frente das obras de Anita, ouvindo as monitoras descrevendo cada detalhe, perguntando e tirando as dúvidas facilita muito explorar a imaginação.
Aos olhos dos observadores, ver a cena de cinco deficientes visuais acompanhando o trajeto todo de uma exposição, posicionados em frente às obras de Anita, junto a duas monitoras, pode parecer estranho, mas não é. Estando junto à obra, os monitores conseguem transmitir com maior facilidade e fidelidade as informações. Rodrigo, o mais jovem do grupo, diz que no ensino fundamental estudou e até fez trabalhos sobre a Semana de Arte Moderna. Relatou que estava feliz pela oportunidade de conhecer mais sobre Anita Malfatti.
Antonio, um apaixonado por mobiliário, fica fascinado quando, ao passarem para a 1ª sobreloja, são convidados a sentar para uma entrevista num banco de madeira antigo restaurado pela CAIXA. Suas mãos logo percorreram cada curva e cada entalhe na madeira, fazendo uma leitura rápida da peça histórica. Quando lhe pergunto sobre ter vivido a experiência de estar diante da "mãe do modernismo" no Brasil, Antonio salienta a importância de estarem de forma ativa e interativa adquirindo mais conhecimento cultural através de explicações e descrições tão agradáveis.
O casal Pedrucio e Arlete estiveram muito atentos às explicações. Mas Pedrucio mostrou mesmo sua felicidade quando pôde tocar e abrir um cofre antigo que faz parte do cenário montado no Museu da Caixa, no quarto andar do prédio da Praça da Sé. A peça foi parte de uma agência bancária antiga, um dos primeiros guichês de atendimento ao público.
Eles ainda puderam tocar e conhecer móveis que fizeram parte da sala da Presidência na década de 50, máquinas de escrever, de somar, registradoras e de chancela. Foram explorando com mãos curiosas em busca do resgate histórico da CAIXA.
Na despedida, agradeceram à CAIXA e aos monitores pela oportunidade, carinho e atenção com que foram recebidos e pediram para que em outras exposições não sejam esquecidos. A visitação, que estava prevista para ser feita em duas horas, se transformou em quase cinco horas de puro aprendizado mútuo.
Entrevista e fotos: Di Bonetti
Curadora de Referencial Anita Malfatti