Um trambiqueiro high society, munido de uma perua Volvo S-40 1998 (R$ 35 mil, em média), de uma suíte executiva no Intercontinental de São Paulo (R$ 940 a diária) e rudimentos de francês, sumiu com três obras de arte avaliadas em R$ 400 mil.
O golpe que o autoproclamado marchand Ricardo Fonseca Alves, 39, aplicou na galeria de arte Juliani é daqueles de cinema. Combina a frieza de o "Ladrão de Casaca", de Alfred Hitchcock, e os planos mirabolantes de Ripley de "O Amigo Americano". Como o crime perfeito não existe ("é só uma brincadeira de salão", como diz Ripley), há trapalhadas de chanchada no meio da fraude.
Eis o resumo do trambique:
No dia 18 de fevereiro, por volta das 11h, Alves ordena que o Intercontinental, na alameda Santos (Jardins), envie um táxi até a galeria Juliani, na rua padre João Manoel, para apanhar três obras de arte: um guache sobre papel de Maurice de Vlaminck (avaliado em R$ 100 mil), um desenho colorido de Diego Rivera (R$ 100 mil) e um óleo sobre tela de Albert Marquet (R$ 200 mil).
Um funcionário da galeria, João Benedito de Oliveira, 36, leva os três trabalhos nas mãos, em um Omega, até o hotel. Lá, Alves diz que um cliente que viera de Paris, chamado Charles Goldenstein, espera na suíte para ver as obras.
Por volta das 13h, Benê, como é conhecido o funcionário da galeria, pede à recepcionista para ligar ao quarto 1901, já que esperara por quase uma hora. Ficou estarrecido com a resposta: não havia mais ninguém na suíte, a conta fora encerrada por volta das 7h30. Fora paga com um cartão de crédito do próprio Alves.
Para fugir do hotel com os trabalhos, o trambiqueiro do Volvo agiu como um Cary Grant, o ladrão de casaca de Hitchcock. Pediu à direção do hotel que lhe arrumasse uma saída mais discreta. Seu pretexto era de que havia repórteres no lobby e ele não estava disposto a dar entrevistas. Os três quadros nunca mais foram vistos.
"Não sou ladrão"
Alves, porém, não conseguiu fugir em silêncio. Por volta das 14h, atendeu o celular e contou a uma das sócias da galeria, Ariane Elkins Juliani, 62, que iria para o hotel Renassaince. Ela confirmou com o hotel que havia, de fato, uma reserva em nome dele. Depois, Alves disse que levaria os trabalhos para um professor da USP analisar. Já no final da tarde, dizia estar na avenida Paulista, trocando os euros que havia recebido pela venda dos quadros.
"Ele me fazia ameaças pelo telefone. Dizia: "Eu não sou ladrão e você me deve desculpas". Imagina, se vou chamar de ladrão alguém que está com quadros que deixaram comigo que valem R$ 400 mil... Não sou burra", diz Ariane. Os quadros estavam consignados à galeria --nenhum dos proprietários quer aparecer.
No dia 5 de março, ele mandou um e-mail a Benê, no qual eleva o tom das acusações: "Quase entrei de laranja na mão de vocês, e não roubei quadro nenhum", escreve. "Todos os quadros são falsos e vcs sabiam disso."
Plano de sete meses
Alves não interrompeu as ligações: telefonou três vezes para um investigador do 78º Distrito Policial, que investiga o caso. Ora diz que está na Europa, ora que está em Miami. A polícia descobriu que ele estava em Mogi das Cruzes, onde vive a sua irmã. Alves nasceu numa cidade vizinha, Suzano (Grande São Paulo), onde sua mãe mora num apartamento que vale menos que o Volvo dele.
Alves obteve os quadros tão facilmente, segundo Benê, porque era freqüentador da galeria. Em julho, passou todos os dias por lá durante uma semana. De acordo com o funcionário da galeria, andava sempre com roupas caras, chegava de Volvo ou de Subaru e tinha uma mania --ficava monitorando os batimentos cardíacos. Vez ou outra, pedia para usar o computador para checar seus e-mails. Tentou vender um quadro de Di Cavalcanti (1897-1976), "Duas Mulatas Conversando", usando a Juliani como intermediária, sem sucesso.
No aniversário de Edoardo Giuliani, 69, o dono da galeria que era amigo de Pietro Maria Bardi, deu uma caixa de charutos de presente. No mês passado, freqüentou a galeria diariamente por dez dias.
Na véspera do golpe, pediu que levassem ao hotel uma tela do suíço Heinrich Füssli (1741-1825). O quadro voltou para a galeria no mesmo dia, mas Alves disse que o compraria por R$ 27 mil.
O delegado Baldomero Girbal Cortada Neto, 44, diz que o crime já está "50% esclarecido porque sabemos quem é o autor". Segue, porém, o mistério do motivo e o que ele queria fazer com as obras. "Vamos prendê-lo. Sabemos lidar com estelionatários de Armani." A pena para furto qualificado é de dois a oito anos de reclusão.
O advogado da galeria, Antônio Sérgio de Moraes Pitombo, 34, diz acreditar que ele está ganhando tempo para falsificar os originais. Aí, segundo o delegado, estaria comprovada a acusação de que os quadros eram todos falsos.
MARIO CESAR CARVALHO
da Folha de S.Paulo