Artista plástico santista, nascido em 1927 e dono de estilo único, morreu ontem na Capital após uma longa batalha contra o câncer
Da Redação
O universo do realismo fantástico nas artes plásticas amanheceu abatido pela realidade da vida. Faleceu ontem na Capital, aos 85 anos, o santista Mário Gruber, após uma longa batalha contra o câncer (ele estava internado em uma clínica). O corpo foi cremado à tarde, no Cemitério da Vila Alpina.
"Recebi a notícia de sua companheira. É muito triste. Foram, pelo menos, 30 anos de convivência como amigo e marchand. Estive com ele pela última vez em julho. Ele me deu uma obra com dedicatória", relata o santista Marcos Lula.
Baseado em seu relacionamento com o artista, Marcos conta que Gruber era muito forte, tanto que resistiu por um longo tempo à enfermidade. E não fosse o apego à cigarrilha… "Eu brincava com ele. Para, você viverá até os 100 anos! E ele dizia: diminuí. Mas não conseguia ficar sem pitar".
Assim como sua obra, Gruber tinha um gênio forte, o que para alguns soava como rabugento, reclamão intratável. "Era como todo artista: sensível, mas também temperamental. Não tinha papas na língua e dizia o que pensava, o que, tenho certeza, atrapalhou sua carreira. Mas quando ele gostava de alguém, era generoso, amigo".
Para exemplificar, Marcos conta que Gruber colecionou amigos importantes, entre eles, Diego Rivera e Lasar Segall. Pintou com Di Cavalcanti. Na França, foi amigo do colombiano Fernando Botero. "Este fez sucesso comercialmente falando, devido ao jogo de cintura. O que faltava a Mário".
Gruber – avisa o amigo e marchand Marcos – era um artista internacional. Teria sucesso em qualquer lugar do mundo, já que não retratava a nossa regionalidade, como faziam Portinari e Di Cavalcanti.
"Ele tinha uma temática internacional. Veja que se apropriou das máscaras e dos bailes de Veneza para recriar personagens fantásticos com uma técnica maravilhosa e estilo próprio. Isso sendo autodidata".
As obras de Gruber valiam bem mais do que o artista santista pedia, atesta Marcos, que vendeu mais de 300 de sua autoria. "Ele não conseguia se ater somente a um marchand, brigava e partia para outro, pois achava que eles estavam ganhando bem mais do que ele. Na verdade, como todo artista que trabalha por amor, Gruber não sabia quantificar o valor da sua obra".
O desaparecimento do artista santista representa a quebra do último elo que tinha de nomes importantes de sua geração. "Ele estava no nível de Tarsila, Volpi, Anita, Aldemir Martins. Talvez com sua morte sua obra possa ser revista, e passe a valer o quanto realmente vale".
Solo em seu solo – Uma coisa não sai do pensamento do colecionador emarchand Paulo Marcondes Torres: uma exposição da obra de Gruber que retrate, realmente, toda a sua amplitude. Paulo foi o responsável pela única e última mostra dele aqui.
No ano passado (de julho a agosto), a Pinacoteca Benedicto Calixto abrigou a mostra Anjos do Renascimento, apenas um recorte da sua produção. "Fiquei feliz, foi muito boa, e o Mário Gruber, também. Dito por ele, foi sua primeira exposição individual em sua Cidade".
Apenas um tira-gosto a aguçar o apetite. "Ele pintou Santos, o Santos FC, e criou o personagem Moleque Cipó, que retratava os problemas sociais na Cidade. Na verdade, creio que ele se colocava no personagem. Um moleque que soltava balão, pipa, malhava judas… Ele também brincou com a musicalidade do Carnaval. E, devido ao momento político, amordaçou e paralisou o Moleque Cipó. Voltou à fantasia com seu alter-ego Astolfo, um boneco de pano. Ou seja, há muita coisa para uma grande exposição".
Mário Gruber, avalia e avaliza Paulo Torre, ultrapassou as fronteiras brasileiras. Era latino-americano, lutava contra o colonialismo cultural. "Sua temática era abrangente. Não primava pelas cores ou pelo belo, sua obra era densa, principalmente as gravuras. Tão fortes quanto sua personalidade".
Na Capital, afirma Paulo Torre, Gruber, curiosamente, é conhecido de modo compartimentado. "Há quem lembre dele como o pintor dos bustos (da maioria) dos governadores do Estado de São Paulo, obras que estão no Palácio do Governo. As senhoras da sociedade de sua época falam dos personagens fantasiados, que muitas chamam de palhacinhos, o que deixava Gruber muito bravo. E assim por diante".
Maldita agenda – Por duas vezes ele escapou por entre os dedos de Léo Mendes Coelho e Melo. Não por vontade própria do artista. É que Gruber já havia assumido compromissos em outros locais.
"O convidei duas vezes para expor na galeria da Associação dos Médicos, da qual fui diretor de 1972 a 1982. Infelizmente, ele não pôde. Seria uma honra por todo o seu talento".
Ginecologista e obstetra, Léo, embora não fosse um colecionador de arte – "não tinha dinheiro para isso" -, fazia questão de levar à galeria artistas com estofo. "No mínimo, que tivessem no currículo três salões. Ganhei inimigos por isso, principalmente artistas santistas. Só porque nasceram aqui entendiam que era suficiente".
O convívio com Gruber foi precoce. Léo fazia o antigo curso Científico, portanto, antes de cursar Medicina. "Embora mais novo do que ele, frequentei algumas vezes o ateliê do Mário, que ficava na esquina das ruas General Câmara e Dom Pedro, no Centro de Santos. Era muito interessante. Depois ele foi para São Paulo e quase não nos falamos. Há 30 anos eu não o via. É uma pena que tenha partido daqui e da vida".
Desapego – Quem também conviveu com Mário Gruber foi o marchand Reinaldo Marques, curador da exposição na Galeria 22, em São Paulo, no meio deste ano. Doente, o autor não pôde comparecer.
Em entrevista, à época, a A Tribuna, Reinaldo falou da descoberta de um homem culto, cabeça aberta e com opiniões bem formadas sobre qualquer assunto.
"Sua sabedoria é impressionante, assim como seu desapego às obras que cria. Em uma conversa, perguntei se tinha ciúme dos seus quadros, se tinha dificuldade em se desfazer deles, já que neles estavam todas as suas emoções. Respondeu: "É muito importante o que você está falando, mas a partir do momento em que assino uma obra ela está livre, está solta no mundo".
Agora, Mário Gruber também está livre e solto no mundo dos anjos que pintou.
Último desejo
Carlos Conde
Editor-chefe
Mário Gruber vai embora sem realizar seu maior desejo: uma viagem sentimental a Santos. Ele queria, como nos velhos tempos, perambular pelos lugares que marcaram sua juventude. Voltar à Boca, hoje decadente, onde conheceu seus primeiros amores furtivos. Caminhar pelo Centro Histórico e conferir os velhos edifícios, como o prédio da Bolsa do Café. Passear incógnito pelo Gonzaga, em busca do footing que há muito tempo já não existe. Os rapazes ficavam enfileirados de um lado e do outro da calçada, frente ao antigo Bar do Atlântico, e as moças passavam ao centro, despertando suspiros e olhares cobiçosos.
Mas ele queria, principalmente, encontrar a casa da sua infância no José Menino, derrubada pela especulação imobiliária. O que jamais lhe contei.
Nessa visita à terra natal, sua fantasia seria, na verdade, reencontrar a adolescência, na praia próxima à divisa com São Vicente, onde ele reinou como um menino-moço bonito e forte. Foi nesse tempo, envolto pelas brumas do passado, que ele tomou sua decisão maior. Seu pai, dono de um cartório na Praça dos Andradas, próximo ao Teatro Guarany, o escolhera para sucessor.
Acontece que aqueles papéis e carimbos eram tudo que Mário não queria da vida. Em uma tarde de outono, foi à janela e encantou-se com as árvores centenárias e a luz deslumbrante que se espreguiçava entre elas. Do fundo da sua alma de artista ecoou um grito incontrolável: "Eu sou um pintor!".
A decisão irrevogável estava tomada. Os anos seguintes só confirmariam sua vocação inata. Ali estava um artista plástico de muito talento. Subiu a Serra e em São Paulo ganhou um concurso e uma bolsa que o levaram a Paris. Era o início de uma trajetória que o consagraria como um mestre do pincel e da gravura.
Esses e outros instantâneos de sua vida ele me contou ao longo de dois anos, a partir de 2007, tirando longas baforadas de suas cigarrilhas baianas. E em meio ao sabor de empadinhas de palmito e quindins, que eu lhe levava e eram duas de suas maiores paixões gastronômicas.
A historiadora Heliana Lins, amiga comum que me conduziu até ele, conta que Mário, já atacado pelo câncer, como que ressuscitou com a possibilidade de resgatar em livro toda sua venturosa existência. "Foi uma espécie de flor que desabrochasse", me disse ela.
Embora cuidado com todo o carinho por sua última companheira, Juliana, que se desdobrava em atenções, parecia precisar de alguém de fora para compartilhar as histórias de uma longa vida.
Seu colorido depoimento foi gravado em madrugadas intermináveis no apartamento da Rua das Palmeiras, em São Paulo. Ele narrou tudo, sem nenhum tipo de censura prévia. Falou da sua paixão pelas mulheres, por Santos, pela praia, pela política, por Paris. E pela arte, é claro. Seu ingresso no Partido Comunista, sua viagem à então Cortina de Ferro e sua decepção com a máquina partidária e alguns supostos líderes. Mas nada disso amenizou sua aversão pelo capitalismo e sua crença de que um dia o mundo será socialista.
O convite de A Tribuna, para que eu assumisse a chefia da Redação, em agosto de 2009, interrompeu nossos encontros. Em um dos últimos, ele me falou da doença: "Os médicos dizem que eu tenho câncer em três locais do meu corpo. Mas eu não sinto nada, nenhuma dor. Um dia pode ser que tudo isso exploda".
Em nossa derradeira conversa, ali por julho de 2009, ele me confessou a esperança de que suas cinzas nadassem, como ele fazia tão bem, atrás da ilha Urubuqueçaba.