A expressão "escrever o nome na história" - surrada pelo uso abusivo - suscita a ideia de que é preciso fazer algo grandioso, significativo para garantir uma janela com vista para o mar da posteridade. Mas há quem acredite que ter a imagem retratada em uma obra de arte ajuda - e muito. Na Bahia, uma polêmica tem movimentado o meio político. Ela foi deflagrada após a sugestão do deputado estadual Paulo Rangel (PT), de substituir parte dos personagens da pintura "A Procissão do Senhor dos Navegantes", por outras figuras do poder.
O quadro, assinado pelo artista plástico Carlos Bastos (1925-2004), foi pintado no início da década de 1990, período em que o Estado vivia sob as rédeas do Carlismo (grupo político de Antonio Carlos Magalhães), e faz alusão à principal galeota usada na tradicional festa, realizada em 1º de janeiro, na baía de Todos os Santos, desde 1892. Na obra, atualmente exposta na Assembleia Legislativa da Bahia, foram retratados personagens não só do meio político, mas cultural e religioso.
Além de Antônio Carlos Magalhães, seu filho Luiz Eduardo e um punhado de aliados, a "nau" transporta figuras como Irmã Dulce, Mãe Menininha do Gantois, os escritores Jorge Amado e João Ubaldo Riberiro, entre outros. Os bárbaros Caetano Veloso, Gil, Bethânia, Gal Costa - além do próprio Carlos Bastos, num autorretrato - também são representados.
A proposta deixou indignados alguns parlamentares, mas também serviu de mote para piadas. O deputado estadual Bruno Reis (PRP), por exemplo, em pronunciamento na Casa, debochou, dizendo que seria necessária uma sessão espírita para atender o desejo do petista. Pedro Rangel, porém, em entrevista a Terra Magazine, apresentou discurso diferente.
Negou, com vêemencia, que teria subido à tribuna da Assembleia para propor o tal "retoque" no quadro. Defendeu-se; suas palavras teriam sido "distorcidas", pois apenas sugeriu a substituição da obra.
- É uma inverdade. Até porque não me sinto com esse direito de dizer quem foi mais importante, quem foi menos importante. O que eu coloquei é que aquela obra representa uma injustiça em relação a baianos que construíram uma história, seja ela na política, seja ela na cultura, e que não estão representados. Sendo que ela foi encomendada e representou uma época, que, infelizmente, foi uma época de muito autoritarismo, em que a Bahia tinha um dono. É uma obra, digamos assim, "dos amigos do rei" - ironizou.
Particularmente incomodado com o "embarque" do falecido Luiz Eduardo na galeota, o deputado disparou:
- Praticamente todos os monumentos da Bahia têm o nome de Luiz Eduardo Magalhães, que nunca foi essa figura tão importante na história do Brasil e da Bahia, a não ser pelo fato de ser filho do "rei". Tanto é que ele está na nau do Nosso Senhor dos Navegantes, que está mais para Nosso Senhor dos Arrependidos, porque grande parte aderiu ao governo. E o Luiz Eduardo ainda com cara de menino. Nada tinha feito pela Bahia para estar naquela nau - revolta-se.
Rangel argumentou que o quadro já passou por restauração e que, na ocasião, o artista Carlos Bastos teria acrescentado, "sob encomenda", novos personagens.
- Eu peguei duas fotos (antes e depois da restauração) e constatei que a obra é totalmente diferente. Acho que Carlos Bastos não devia ter se submetido a esse tipo de lógica. Mas na Bahia tudo se podia. Podia mudar o nome do Aeroporto Dois de Julho para Luiz Eduardo Magalhães. O que eu quis colocar foi o personalismo ali implícito. É um absurdo ter 500 estabelecimentos aqui, com o nome de Luiz Eduardo, que não foi mais importante do que Ruy Barbosa - reitera o ataque.
Para o parlamentar, "algumas reparações têm que ser feitas no Estado da Bahia".
- Há figuras como Ana Nery, Joana Angélica, (Luiz) Tarquínio, (Antonio) Lomanto (Júnior), que foi governador da Bahia. Acho que tínhamos que ter uma obra e que essa obra, se for o caso de se homenagear, deve ter critério. Se ela homenageia um governador da Bahia, poderia homenagear todos. Poderia homenagear todos os presidentes da Assembleia, se fosse o caso. Não estou propondo nada para a atualidade. O que eu propus foi a substituição. Acho que aquilo ali (o quadro de Carlos Bastos) esconde a real história da Bahia, representa apenas um período, um período autoritário. E a Assembleia Legislativa não pode ter uma única obra que represente uma única época. Nada numa casa do povo, numa casa democática, pode cometer injustiças. Então, tem muita gente que deveria estar sendo homenageada. Acho até que a obra podia ser leiloada. É uma grande obra - afirmou, para depois admitir que o quadro poderia dividir espaço com outro, ampliando o rol de contemplados, na mesma baía de Todos os Santos.
Fonte: Terra Magazine