Com mais de 300 peças do acervo do museu Etnológico de Berlim, chega ao Brasil a maior representação da Arte Antiga da África

Em lentes macroscópicas, o Brasil provavelmente enxergaria a África sob duas perspectivas distintas. A primeira é uma imagem refratária, referência à formação da própria identidade brasileira, inconcebível sem o sincretismo cultural de negros, brancos e índios, que terminou por horizontalizar “castas” etnológicas. Mas, ao contrário dessa paisagem memorial, a segunda perspectiva que o Brasil tem do continente africano não é exclusiva em sua representação, pois a África simboliza hoje, para o mundo inteiro, o epicentro da miséria econômica e do completo desrespeito aos direitos humanos.

 

Além de demonstrarem pontos de vista, esses dois panoramas sintetizam o grau de relacionamento que o Brasil tem atualmente com o chamado “continente dominado”: apesar de fazer parte da construção da impressão digital do País, os africanos estão hoje para os brasileiros como os índios estavam para os portugueses há 500 anos: exóticos, pobres e distantes. Pois este mês, o Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) do Rio de Janeiro e o Instituto Goethe da Alemanha tentarão, pelo elo mais forte entre os dois territórios – o cultural –, estreitar esse afastamento com a exposição Arte da África.

 

Orçada em U$ 900 mil e com um seguro que chega a mais de U$ 57 mil, a exposição é certamente a maior representação da Arte Antiga da África já apresentada no Brasil. Serão mais de 300 peças do acervo do Museu Etnológico de Berlim, que tem a segunda maior coleção africana do mundo, perdendo apenas para o British Museum, de Londres. Os objetos fazem parte daquilo que terminou sendo adquirido pelos europeus durante a expansão mercantilista do colonialismo, e a maior parte deles nasceu, não exatamente como peças artísticas, mas sim como simbologias religiosas, ornamentos ou somente objetos funcionais.

 

Entre as peças mais preciosas dessa exposição está a figura real Chibinda Ilunga, herói cultural que, segundo o mito, foi o criador do reino de Luanda, origem do povo Chokwe, da Angola. A escultura é única no mundo e está datada como sendo do século 19. Lembra, pelos pés e mãos desproporcionalmente grandes, algumas esculturas em barro, produzidas no Nordeste brasileiro. Há também as máscaras Gelede, também do século 19, utilizadas na dança pelos membros masculinos do grupo de culto do mesmo nome. Esta dança era, e ainda hoje é muito comum, principalmente no sudoeste da região da tribo Yoruba, na Nigéria.

 

Objetos usados no cotidiano de tribos ganham relevância de obras-primas, como de fato parecem ser. Um saleiro da Serra Leoa, do séc. 15 ou 16, esculpido em marfim, mostra como, já naquela data, artesãos africanos uniam seus elementos estéticos aos padrões funcionais europeus, colocando figuras humanas e zoomórficas na base (elementos africanos) e colares de miçanga por cima (preferências européias).

 

Peter Junge lembra ainda que, muitas dessas peças, levadas para Europa no século 19, terminaram por influenciar esteticamente artistas sedados pelo “tédio da pintura acadêmica” que precedeu a Primeira Guerra Mundial. “A admiração desses artistas de vanguarda era provocada pelo suposto primitivismo, pelo ‘vigor originário’ e animação dos objetos com força mágico-religiosa”, escreve ele no catálogo da exposição.

 

O conjunto de peças que será mostrado no Brasil, a princípio no CCBB do Rio de Janeiro e, em seguida, em São Paulo e Brasília, soma um número ainda maior de peças que estão em exposição permanente no Museu Etnológico de Berlim. Este, por falta de espaço, não tem estrutura para mostrar mais que 200 objetos de arte. Paralelamente à mostra, haverá a realização de outras atividades culturais, tais como: exibição de filmes africanos e a apresentação de novos artistas do continente, tanto em música como em teatro contemporâneo.

 

“Embora nós brasileiros tenhamos a África em nossa formação cultural, o contato com a cultura produzida lá é muito pequeno. Nosso objetivo é possibilitar aos brasileiros o encontro com uma cultura irmã”, esclarece Yole Mendonça, diretora do Centro Cultural Banco do Brasil do Rio de Janeiro. O discurso está em sintonia com a nova política de relações que o novo governo brasileiro tenta hoje desenvolver com a África. Recentemente, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva chegou até a sancionar a lei de nº 10.639, que torna obrigatório o ensino de história e cultura afro-brasileira nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio.

 

Não é somente com o continente africano que essa exposição pretende abrir portas de relacionamento. Quando as negociações para a vinda de Arte da África começaram, em 2001, Alfons Hug, do Instituto Goethe e atual curador da Bienal de São Paulo, já tinha em mente fortalecer, a partir de então, a ponte entre Brasil e Alemanha. A idéia é promover outros projetos de intercâmbio entre o CCBB e os 20 museus estatais de Berlim que formam o “Patrimônio da Prússia”, considerado, na sua totalidade, o Louvre alemão.

 

Carol Almeida

Carol Almeida é jornalista.