MARIA HIRSZMAN

 

A 50.ª Bienal de Veneza, que será aberta oficialmente em pouco mais de um mês, contará com uma das mais amplas participações brasileiras da história da mostra, o mais antigo e tradicional evento dedicado às artes plásticas do mundo. Isso porque, além da tradicional representação nacional, selecionada nornalmente pela curadoria da Bienal de São Paulo, e que este ano trará as obras de Beatriz Milhazes e Rosângela Rennó, os artistas brasileiros também estão presentes nas outras mostras paralelas, organizadas pelo comissário-geral da exposição ou por curadores especialmente convidados.

 

Os brasileiros se concentram de forma mais significativa na mostra A Estrutura da Sobrevivência, organizada pelo crítico argentino e grande conhecedor da produção contemporânea brasileira Carlos Basualdo, que formou um elenco com o objetivo de mostrar como a arte reflete os efeitos das crises políticas, econômicas e sociais vividas no Terceiro Mundo. "Cada vez mais a racionalidade da esfera pública se metamorfoseia em efêmeros encontros comunitários e estratégias de sobrevivência coletiva", afirma Basualdo em seu texto. A obra efêmera, um tanto tosca e propositalmente desconcertante de artistas nacionais tais como Alexandre da Cunha, Fernanda Gomes, Marepe e Cildo Meireles se encaixa perfeitamente nessa vertente.

 

"Vivemos um momento estranho; é quase como se arte tivesse sido atropelada", afirma Meireles.

 

No seu caso, a participação é apenas gráfica, já que o artista comparece com uma intervenção no catálogo do evento, com uma montagem a partir de imagens de uma chacina no Rio - com direito à exibição pública dos corpos, como se estivessem numa galeria de arte - e que evidentemente remetem também ao atual cenário de guerra. O outro grande nome da arte brasileira presente, Lygia Pape, também terá uma participação, digamos, gráfica, estando representada com um cartaz na mostra Utopia.

 

Ainda participa da mostra Ritardi e Rivoluzioni - outra das ilhas que compõem o arquipélago idealizado para discutir a arte neste início de terceiro milênio, com curadoria do próprio Bonami e de Daniel Birnbaum - a mineira Rivane Neuenschwander. Além disso, deve ocorrer uma série de mostras paralelas de arte brasileira na cidade de Veneza, mas - apesar da proximidade da abertura do evento - cujos contornos ainda não foram definidos pela patrocinadora, BrasilConnects.

 

Ao menos no que se refere à participação nas mostras oficiais da Bienal, há uma forte sintonia entre o trabalho dos brasileiros selecionados e o tema geral da mostra. Enquanto Beatriz Milhazes e Rosângela Rennó compõem um interessante contraponto, simbolizando, respectivamente, o Sonho e Conflito (termos que dão a tônica da investigação ao mesmo tempo política e estética proposta por Bonami), os outros artistas trazem para o evento um interessante questionamento dos parâmetros dentro dos quais se dá a criação artística, quebram de alguma maneira a relação passiva dos artistas diante do circuito das artes. A Série Vermelha, de Rosângela Rennó, ainda tem uma dimensão provocativa, trazendo uma estreita relação com o clima de conflito que reina atualmente no mundo, mesmo sem ter sido pensada como tal.

 

Como afirma Alexandre da Cunha, "esse é um pouco o papel de uma exposição desse porte. Tentar trazer um pouco de risco, de desconforto à cena das artes, dos museus, das galerias. Senão não tem muita graça". Aparentemente, essa estratégia de pulverizar a exposição central em uma ação conjunta de vários curadores e a necessidade dos artistas de dar vazão a uma certa estupefação ao momento trágico em que se encontra o mundo deverá transformar a próxima Bienal de Veneza num grande e intenso palco de reflexão poética sobre o papel social da arte. Afinal, como diz Fernanda Gomes, "arte é política, simplesmente por ser liberdade em último grau".

 

Fonte:MARIA HIRSZMAN - colunista do jornal "O Estado de São Paulo"