Vanguarda museológica deixa a capital, enquanto o Masp agoniza por causa de sua administração anacrônica
Quando observamos o sucesso da mostra de dinossauros na Oca, a situação de absoluto abandono do Masp e uma mostra como "Luz e sombra na pintura italiana entre o Renascimento e o Barroco" na Pinacoteca do Estado, nos perguntamos: afinal, o que acontece no cenário dos museus da principal cidade do país?
Museus são instituições educacionais. Neste perfil cabe, por exemplo, a mostra dos dinossauros. Por outro lado, a Unesco discute se é fundamental que tenham acervo próprio para que possam ser chamados assim. Mas certamente as exposições blockbuster, de sucesso em São Paulo desde a mostra dos 500 anos, nem sempre precisam ter por trás um museu. O Guggenheim, que andou namorando o Rio para vender uma franquia, é uma multinacional de edifícios monumentais (Nova York, Berlim, Veneza, Las Vegas e Bilbao) que recebem grandes mostras, quase nunca relacionadas com as coleções relativamente modestas da Fundação Guggenheim.
Tirante o movimento cultural blockbuster, inagurado no curto reinado museológico do que veio a ser a Brazil Connects de Edemar Cid Ferreira, tudo o que se fez de importante em prol da museologia nos últimos 15 anos aconteceu fora de São Paulo.
Basta tomarmos como marco o Museu de Arte Contemporânea de Niterói, com projeto de Oscar Niemeyer, inaugurado em 1991. A partir daí, o Museu Oscar Niemeyer em Curitiba foi inaugurado em 2002; o Museu de Artes e Ofícios, da Fundação Flávio Gutierrez, em dezembro de 2005, em Belo Horizonte; e o ano de 2007 assistirá à inauguração do Museu Iberê Camargo, em Porto Alegre. No conjunto desses espaços todos, serão aproximadamente 36 mil m² dedicados à museologia e disponibilizados fora de São Paulo. Algo equivalente em área a um bom shopping center.
Em contraste, em São Paulo está mais do que claro que o Museu Brasileiro de Escultura simplesmente não decola. Virou um espaço comercial para lançamento de produtos. Shopping-centerizou-se. Também é difícil entender porque não há na cidade um museu devotado a Cândido Portinari ou a Volpi, já que Porto Alegre terá o seu Museu Iberê Camargo. E choca ver como a administração do Masp recentemente "jogou a toalha", bolando um rocambolesco negócio imobiliário como única forma que vê para reabilitar o museu que, outrora, foi considerado o mais importante da América Latina.
De positivo temos apenas a demonstração de que uma boa gestão é quase tudo para a vitalidade de um museu, como é o caso da Pinacoteca do Estado sob a direção de Marcelo Araújo, antes à frente do Museu Lasar Segall. A mostra "Luz e sombra na pintura italiana" é típica do que, no passado, o Masp faria. Houve uma migração de competência. Já na ponta do blockbuster é a Faap – Faculdade Alvares Penteado, que se firma como possível líder das mostras espetaculosas de acervos internacionais, no vácuo deixado pela Brazil Connects. Tudo somado é quase nada para uma cidade do tamanho de São Paulo.
No modelo brasileiro, museus são fruto essenciamente de uma aliança entre o Estado e a burguesia. Ainda que o Estado tenha grande importância na criação e manutenção dos museus, especialmente pela renúncia fiscal que a Lei Rouanet propicia, nem um deles sai do chão se não houver um grande envolvimento da burguesia: grandes grupos empresariais precisam investir anos a fio para pôr de pé essas instituições gigantes. Mesmo quando quem lidera o projeto é o setor público, sem o respaldo político e financeiro do empresariado não se chega a parte alguma. Então, seria o caso de perguntar: por que a burguesia paulista, que se jacta de ser a mais vigorosa do país, abandonou este ramo de atividades culturais?
Alguma relação deve haver com o reinado de Edemar Cid Ferreira, o breve. Seu modelo de negócio consistia em identificar "oportunidades de ouro", realizar mostras blockbuster com um olho no mercado nacional e outro no internacional, maximizar a bilheteria com grande investimento em marketing, sem deixar, depois, qualquer coisa sólida. Essa ação centrípeta do marketing enxugava os recursos do mercado.
Exceto a reforma da Oca -num processo que alguns viram como de preparação da "privatização" de todo o Parque Ibirapuera- nada ficou quando ele foi, finalmente, colhido pelo fisco e excluído das altas rodas das finanças. Mesmo o "capital de giro" que formava para outras realizações congêneres... foi evaporado. Mas a volatilidade da Brazil Connects contrasta com a crise crônica da qual o Masp não consegue se livrar há mais de uma década.
Por vir de um homem que é conselheiro do Masp há 30 anos, atenta à inteligência a tese defendida pelo cardiologista Adib Jatene de que a salvação deste museu está em adquirir o prédio ao lado, como área de expansão, e nele instalar um mirante de onde se possa, nos dias sem poluição, ver o mar. É uma chantagem com a cidade dizer que "sem a torre, a aquisição do prédio pelo museu se inviabiliza, corre-se o risco de sepultar para sempre a única alternativa para a tão necessária e almejada ampliação do Masp"1.
Ele imagina que a torre será uma atração tão forte que permitirá superar o estrangulamento financeiro do museu, resolvendo "o problema crônico de custeio" em troca de apenas permitir, por dez anos, o marketing do patrocinador em obra tão atentatória ao skyline da cidade e ao conceito de museu que a modernidade necessita. Guardadas as proporções, seria o mesmo que criar um novo Terraço Itália para sustentar o Masp.
Museus envelhecem, mais pelas suas filosofias administrativas do que pelo acervo ou prédio próprio. E o Masp é o caso mais gritante de senilidade político-administrativa. De jóia da coroa da burguesia paulistana, tornou-se terra-de-ninguém por conta de sua instrumentalização por um grupo político anacrônico. E pode-se dizer que o processo se acelerou vertiginosamente desde a posse do "consagrado arquiteto" Júlio Neves -autor de projetos que, de fato, marcaram a cidade, como a Nova Faria Lima, inúmeros prédios na Avenida Berrini e, finalmente, o edifício-luxo da Daslu, o que o notabiliza como o bandeirante do contubérnio do capital financeiro com o setor imobiliário paulistano.
O que presenciamos no Masp é, na verdade, a obsolescência de um setor da elite política paulistana, o malufismo, que já não representa quase ninguém e, portanto, não consegue mobilizar a burguesia para manter o seu próprio museu. Edemar Cid Ferreira, que tentou ser o novo representante dessa elite nos negócios culturais, naufragou sob o peso da própria voracidade... e a burguesia paulistana ficou sem projetos, "desmuseologizada".
A oposição da Secretaria Municipal da Cultura a este infortúnio da cidade, vetando a torre a despeito da conivência do Iphan e do Condephaat, é algo profundamente meritório. Mas não colocou a pedra de cal sobre o sonho imobiliário, já que a direção do Masp, inconformada, resolveu prosseguir a disputa no Judiciário como se fosse detentora de um direito sobre uma coisa privada. Como a burguesia dá o Masp por sucata, está pouco se lixando pelo seu futuro. Pouco se importa se os que foram colocados lá para dirigir um bem público tenham feito dele uma mera oportunidade imobiliária.
Um dos principais problemas de gestão dos museus é a ausência de regras sucessórias que permitam a renovação de seus quadros dirigentes, a oxigenação das idéias e dos modelos gerenciais. A direção do Masp, constituída como um colégio de cardeais, perpetua-se simplesmente porque nenhum contraditório consegue se instalar no seu Conselho, armado como um clube de amigos. Conselheiros que já morreram fizeram seus parentes herdeiros de cadeiras cativas e, assim, uma estranha idéia de propriedade privada viaja através da carne.
O que está em questão no Masp é o próprio conceito de museu. O que ele tem de condição privilegiada é estar plantado num dos principais espaços democráticos e populares da cidade, como atentam as comemorações públicas e manifestações políticas que têm por epicentro a avenida Paulista. Por outro lado, hoje em dia os museus são permanentemente desafiados a se tornarem populares. Procuram trilhar vários caminhos, como a construção da polêmica pirâmide do Louvre, que reforça a vertente espetaculosa e angaria um bom público composto em sua maioria de turistas. Outros caminhos indicam o reforço dos recursos multimídia e a própria expansão pela internet.
Há também o caminho de buscar enraizamentos na vida dos cidadãos, como prega o museólogo francês Pierre Catel. Para ele, são exemplos o que se verifica em Paris, com o Beuaubourg, o Louvre e a cidade das ciências no La Villette (que não é propriamente um museu, mas também funciona como um respiro cultural para a cidade). No metrô Chatêlet, na capital francesa, passam cinco milhões de pessoas por dia e sempre são realizadas, ali, exposições temáticas, integrando os transportes com a rede de museus franceses.
Dessa perspectiva, o renascer do Masp estaria em se integrar e expandir pela rede do metrô que tem à porta, chegando aos milhões de paulistanos que passam sob o museu ignorando a sua existência. Mas o Masp, ao contrário, fecha-se sobre si e expõe a sua debilidade como uma chaga, num apelo mórbido para que o mercado imobiliário venha salvá-lo. E não é desprovido de sentido simbólico que um ilustre cardiologista, que assiste ao museu no leito da agonia, venha a prescrever-lhe esta intervenção cirúrgica que o tornaria o primeiro Frankenstein dos museus brasileiros.
Por outro lado, os exemplos do Museu Iberê Camargo e do Museu de Artes e Ofícios talvez sejam os mais representativos do futuro museológico nacional e, quiçá, de uma mudança de padrão no mecenato empresarial brasileiro.
Das sete mil obras produzidas por Iberê Camargo, quatro mil são patrimônio da fundação que leva seu nome e que constrói o edifício do seu museu, num custo estimado superior a R$ 40 milhões -o que permitirá a digna existência pública deste que é um patrimônio das artes plásticas nacionais. O grande mecenas da iniciativa é o grupo Gerdau.
No caso do Museu de Artes e Ofícios, este é devido à Fundação Flávio Gutierrez e à coleção Ângela Gutierrez de objetos ligados ao mundo do trabalho. Ângela é conhecida colecionista. Foi um dos esteios da "Mostra dos 500 anos" com sua coleção de santos barrocos que compõem o acervo do seu Museu do Oratório, em Ouro Preto. O seu novo museu, armado sobre uma estação de metrô, se apóia numa coleção iniciada por seu pai e continuada por ela. "Mamãe gostava de comprar antiguidades. Meu pai e eu a acompanhávamos e, enquanto ela ficava na sala, vendo móveis, ele dizia: ‘Minha filha, é preciso olhar também a cozinha e o quintal’", conta Angela Gutierrez.
Segundo Pierre Catel, autor do projeto, o museu foi concebido para a difusão e vulgarização do conhecimento sobre técnicas e ofícios ligados ao mundo rural brasileiro e é esta diretriz de popularização que determinou sua localização num prédio que foi estação de trem e que, restaurado, é hoje o museu integrado ao espaço ferroviário do metrô.
O acervo, composto por mais de 2.000 peças, está organizado por técnicas e ofícios -curtumes, ourivesaria, lida do gado, alambique etc.- e por fonte energética -hidráulica, tração animal, vapor, eletricidade-, cada conjunto compondo um núcleo temático que se presta a varias abordagem e propicia um número enorme de arranjos expositivos.
Do ponto de vista sociológico trata-se também de empreendimento de vulto, pois os objetos nos reportam aos ofícios dos homens livres e pobres dos séculos XVIII e XIX brasileiros, homens que viveram nos interstícios da sociedade escravista sem uma identidade reconhecida. Nos documentos de época eram chamados de "gente mecânica" ou de "baixa mão", conforme registrou Oliveira Vianna no seu estudo pioneiro ("Instituições Políticas Brasileiras") sobre estes tipos sociais que gravitavam em torno dos engenhos e das grandes fazendas de criar. Que este mundo possa emergir para a contemplação da modernidade é algo extraordinário no cenário cultural brasileiro.
Assim, Belo Horizonte e Porto Alegre exibem mais do que a saudável descentralização dos serviços culturais. Mostram o deslocamento da vanguarda da atividade museológica através dessas duas iniciativas vigorosas. Como se fosse um laboratório onde se experimenta o modelo de museus do futuro, Pierre Catel pontifica: "O museu é hoje mais que um departamento. É praticamente um estabelecimento com múltiplas atividades, portanto múltiplos perfis de competência. E penso que isso irá adiante, vê-se bem que o museu se organiza como uma sociedade, que deve responder a demandas (...) uma demanda de público que é muito variada, que muda muito, e que não é necessariamente pedagógica (...) ou somente pedagógica. Mas é, sobretudo, uma variedade de demandas possíveis e imagináveis. Por outro lado, um museu, na sua forma de vulgarização e de difusão, suscita um espaço de sociabilidade que convoca outros especialistas; percebe-se que não há mais um perfil exato: há um excelente gerente à frente de tudo e há um espírito de equipe muito bom dentro do museu"1.
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Carlos Alberto DóriaÉ sociólogo, doutorando em sociologia no IFCH-Unicamp e autor de "Ensaios Enveredados", "Bordado da Fama" e "Os Federais da Cultura", entre outros livros.