Ao tratarmos a escultura ou a pintura na Índia, não podemos subtrair a idéia de que perante elas nos encontramos de certo modo na metade do caminho entre o oriente e o Ocidente. Ao contrário do que sucede com as manifestações plásticas da China ou do Japão, na Índia acreditamos notar desde o primeiro momento um bom número de aspectos que nos são decididamente familiares.
Assim, por exemplo, o gosto pelo narrativo ou a inclinação decidida à representação do corpo humano em todo seu esplendor. No campo da pintura nos deparamos também com que os artistas indianos buscam, como europeus, realçar o volume fazendo uso de uma modelagem suave – o que não sucederá na China salvo nas pinturas budistas nem, muito menos, no Japão – e que, além disso, seu conceito do espaço e o método de perspectiva que utilizam (que ao contrário da ocidental não pressupõe um espectador imóvel, pelo que são utilizados vários pontos de fuga e inclusive mais de uma linha de horizonte numa mesma representação) não nos resultam tão estranhos como a visão panorâmica e os horizontes abertos das pinturas chinesas. Na arte indiana encontramos, por outra parte, uma mistura de realismo e idealização, uma sensualidade, que pareciam emparentá-la com nossas próprias formas de expressão.
Nas paredes dos santuários podem inclusive ser contemplados cenas de um explícito conteúdo erótico, casais fazendo amor ou iniciando uma aproximação amorosa. Em vista de todos estes elementos, o espectador ocidental poderia pensar que se acha diante de uma arte essencialmente diferente daquela a que está habituado, uma arte onde são cantadas as alegrias e os gozos deste mundo, que o artista persegue a beleza formal por si só e no qual procuram produzir um gozo estético pela pura contemplação destas formas. Correm assim o risco de interpretarmos estas representações de acordo com nossas próprias categorias estéticas. Nada seria mais errôneo no entanto.
Realmente a aproximação à pintura ou à escultura indiana deve se efetuar partindo da base da consideração e da finalidade sagrada da arte. O artista indiano está alheio à noção da arte pela arte e a beleza formal não constitui por si só um valor para ele. Também não se considerará nunca um gênio – ao modo de tantos ocidentais – nem procurará ser original. Na Índia, a arte é uma prática que está completamente a serviço da religião – e, mais ainda: surge da própria religião -. Sua meta, então, não pode se esgotar no gozo da contemplação mas está exposta na iluminação do crente. Inclusive aquelas representações que, como as ondulantes figuras femininas (sempre na flor da vida, com formas arredondadas, seios globulosos, corpo estreito e larga pélvis, curvadas seguindo a flexão triple, a tribangha) ou as da maithuna, o casal amoroso, podem nos parecer mais mundanas, estão penetradas de um simbolismo religioso (a união sexual simboliza a união dos princípios masculino e feminino do universo, além do que é uma maneira de participar no ritmo sagrado da vida e, além disso, o auge deste tema durante a época medieval indiana está relacionado com o auge das seitas Kaula-Kâpâlika que utilizavam o rito do ato sexual entre seus membros como modo de chegarem à união mística com a divindade). Ao ser a arte uma atividade de raiz e significado sagrado e dada, por outra parte, a tendência à codificação da civilização indiana, tudo ficará sujeito a rígidas regulamentações. Os Shilpa shastras, textos sobre as técnicas artísticas, determinam as formas, tamanhos, proporções corporais e atributos dos deuses ou gênios, as expressões de seus rostos, as posições de seus membros e os gestos das mãos, que seguindo uma linguagem simbólica, unida com a dança, expressarão a meditação – uma mão sobre a outra -, a caridade -,a mão aberta e colocada para baixo – ou mil outras coisas. Além de se sujeitar a esta normativa destinada a garantir que a representação visualizará corretamente a idéia espiritual, o conceito religioso que deve transmitir, exigem ao artista que antes de realizá-la tenha alcançado um estado determinado de pureza mental e que, entrando depois em meditação, concentrando-se em si mesmo, seja capaz de ver mentalmente a imagem sagrada que depois executará. Como conseqüência de tudo isso, as margens em que se move a liberdade criativa do artista (que por outra parte está organizado em grêmios e pelo menos nos conjuntos monumentais trabalha submetido à disciplina de um ateliê) ficam enormemente reduzidas e sua produção adquire um certo caráter de anonimato e inclusive de impersonalidade. É surpreendente, no entanto, que estando sempre tão próximo de cair numa mera repetição mecânica de temas iconográficos, os artistas indianos tenham conseguido transmitir durante tantos séculos semelhante sensação de frescura e vitalidade. Pelo resto, e dado o posto que ocupavam na sociedade e a natureza de sua atividade, não deve surpreender que os artistas não costumem assinar suas obras e que só o nome de alguns poucos tenham chegado até nós.
A pintura indiana (que apresenta grandes semelhanças com o relevo não só por suas características narrativas e pelos esquemas compositivos ou pela linguagem formal que emprega, como também pelo fato de que como os relevos eram coloridos a pintura aspirava a sugerir o volume mediante o moldado) parece ter se desenvolvido, em seu início, paralelamente à escultura e se apresenta já plenamente formada em suas primeiras manifestações conhecidas, pertencentes ao período de Sanchi (séculos II-I A.C.).
Nesses momentos, e ainda durante vários séculos (até que no período gupta nos séculos IV e V D.C. o bramanismo começa a ressurgir e finalmente acaba se impondo, o que fará que junto com as invasões muçulmanas o budismo seja esquecido até o final do I milênio da nossa era), toda a arte indiana está marcada pela fé budista. Templos e mosteiros apareciam repletos de estatuas, relevos e pinturas que representavam Buda (só a partir do século I A.C., pois até esse momento o Iluminado era representado apenas elipticamente mediante símbolos que aludiam a ele, mas não se utilizava a sua própria figura), os bodhisattvas e os discípulos assim como cenas da vida de Buda, de suas vidas anteriores (ou jatakas) ou de outras lendas piedosas.
Infelizmente as transformações bélicas ou políticas, com sua seqüela de perseguições religiosas e destruições, e o próprio clima do subcontinente indiano parecem ter confabulado para fazer desaparecer quase todas estas decorações pictóricas. Permanece, no entanto, o conjunto excepcional de Ajanta, onde entre o século II A.C. e VII de nossa era, monjes budistas escavaram na rocha vulcânica quase uma trintena de templos (chaitya) e mosteiros (vihara) profusamente recobertos de relevos e pinturas que constituem um dos cumes da arte indiana. Os afrescos mais antigos parecem remontar à época de Bharhut e de Sanchi (século II A.C. – século I D.C.) existindo também outros afrescos pertencentes à escola Amaravati (séculos II-IV D.C.) porém, a maioria deles – também os de maior qualidade – correspondem ao período gupta (séculos IV – V D.C.) e pós-gupta (séculos VI – VIII) isto é, a época que pode ser considerada como “clássica” dentro da arte indiana. Utilizando uma gama bastante ampla de cores (preto, branco, ocre, azul, violeta, verde...) representam nestas guptas não só a Buda, aos bodhisattvas e as cenas da vida do Iluminado e das jatakas, mas também combates de animais, desfiles ou cenas cortesãs. Ocasionalmente, podemos discernir nelas prováveis influências helenísticas ou iranianas, mas o conjunto enormemente próximo ao estilo dos relevos, é essencialmente indiano, assimilando com perfeição os elementos vindos de fora. Encontramos aqui uma arte refinada, de composição talvez desconcertada, mas que faz um uso sutil da linha, sempre flexível e sensual, que denota, além disso, um estudo atento da natureza e que em determinadas passagens alcança um ponto de equilíbrio que pode ser qualificado, sem temor, de clássico. O belíssimo Bodhisattva do Lótus Azul do Vihara I (onde se encontram também outras cenas célebres como o combate de búfalos, o desfile com um príncipe sobre seu elefante e alguns grupos de dançarinas) é uma das imagens emblemáticas da arte indiana e um símbolo da doce e compassiva religiosidade do budismo desta época. São conservados ainda outros testemunhos pictóricos dos séculos V – VII em Sigiriya (Ceilão), Sittanavasal, Badami e outros lugares, mas nenhum resiste à comparação com os de Ajanta que, como alguma vez foi escrito, representam ao mesmo tempo o zênite e quase um canto do cisne da pintura indiana propriamente dita.
Durante o período medieval (séculos IX – XIV), quando a Índia aparece dividida num grande número de entidades políticas e ao mesmo tempo se assiste, por uma parte, a lenta conquista de seu território pelos muçulmanos e, por outra, o auge do hinduísmo bramânico em prejuízo do budismo, a pintura mural entra já numa fase de decadência. Não chegou até nossa época nenhum ciclo mural do Norte da Índia e os conservados no Sul – entre os quais se destacam os afrescos da gruta jaina de Sittanavasal do século IX e os do templo de Tanjore do século XI – já são mais pobres em cor que os de Ajanta – embora os de Tanjore exibam uma gama cheia de vivacidade, com rosas, ocres e dourados – e muito menos ricos nas anotações ambientais. Os afrescos de Tanjore, com cenas hinduísticas das quais a mais célebre é a dança ante Shiva de duas dançarinas acompanhadas de músicos, seguem mantendo de qualquer modo um sentido da linha expressivo e cheio de flexibilidade, ao mesmo tempo que se nota neles a tendência para um maior dinamismo e para uma certa exasperação das atitudes que também é própria da escultura da época.
Por outro lado começa no século XI a se produzir um auge da miniatura, executada em principio sobre folhas de palma (e, portanto com um formato alargado e estreito) e só a partir da segunda metade do século XIV, sobre o papel. As duas escolas mais importantes deste período são bastante diferentes entre si. A escola de Bengala, que se desenvolve nos séculos XI e XII antes de que os muçulmanos finalizem com o seu desenvolvimento, cultiva os temas budistas dentro de um certo tradicionalismo e uma grande correção formal. A escola Gujerat, de adstrição jaina e que se desenvolve durante o século XIII sob um governo muçulmano, exercerá uma grande influencia sobre a formação das escolas do Rajastão e aparece já influenciada pela miniatura persa no tratamento da paisagem e das nuvens, serpentinadas e muito estilizadas ao modo chinês. Uma de suas características mais notáveis é o tratamento dos personagens: curiosamente os governadores muçulmanos aparecem sempre de frente ou três quartos de perfil enquanto que os indianos são representados de perfil e com um ombro nu.
Devemos acrescentar a isso o tratamento dos rostos com o nariz afilado.
O grande período da miniatura indiana seria, no entanto, o da dominação mongol (1526 – 1707) na qual junto com a produção da corte devemos lembrar a das escolas regionais de uma grande variedade. Enquanto a escola de Bengala ou a de Gujerat (onde se nota um recarregamento progressivo de elementos e uma certa tendência à riqueza, visível no maior emprego de ouros) prosseguem, os abundantes centros Rajput – isto é, estados feudais hindus, de alguma forma independentes da corte mongol -, cultivam a ilustração das grandes epopéias hindus como o Mahabharata e o Ramayama e mostram, como as escolas do Decão, os influxos persas como conseqüência do contato de seus artistas com a corte dos mongóis.
Quando a produção desta escola alcança seu maior esplendor e também uma personalidade definida, pois até esse momento o influxo iraniano havia sido absorvente – durante o reinado de Akbar (1556 – 1605), o maior de seus soberanos. Protetor das artes – como os outros membros da dinastia com exceção de Aurangzeb (1659 – 1707) que chegou a perseguir os pintores e a proibir a representação humana -, Akbar trouxe à sua corte artistas de todos os lugares da Índia para ilustrarem os manuscritos destinados à coleção real. A feliz osmose que se produziu assim entre elementos persas e hindus constitui o aspecto mais destacado da escola, na qual, por outra parte, primaram as tendências para o naturalismo e o cultivo do retrato, das cenas cortesãs e da ilustração de fatos históricos contemporâneos e de lendas épicas.
A pintura mongol se refinou ainda mais durante o reinado Shah Jahan (1628 – 1658), sobretudo em estrutura e colorido. Já se aprecia então a influência européia: emoldurado das figuras, preocupação pela perspectiva, tratamento das fontes de luz procurando efeitos plásticos de contraste, etc. de fato, após o reinado de Aurangzeb se iniciou por esta via uma lenta decadência, salvando-se apenas algumas das escolas mais florescentes do Punjab, principalmente a escola de Kangra, precursora da tradição miniaturista ao longo de todo o século XVIII e ainda nos primeiros anos do século XIX. Alguns destes centros se relacionariam também com uma pintura mais popular.